[size=42] Crise da Alma [/size]
O que demônios faria alguém comprar um carro daqueles para andar na cidade? “Não adianta” pensava Timothy, aquilo era um veículo feito para carga e uso rural, não havia justificativa para Daniel chegar com uma Land Rover sendo que morava na cidade.
E custaria tanto pegar um ônibus? Sim, custaria, o primeiro dia do último ano no Ensino Médio era a última chance de esbanjar, e disso Daniel e seus pais faziam questão. Nem tão ricos eram, mas não abriam mão de ostentar o possível, prova disto era a demora dele para sair da Land Rover, com a intenção de que o carro ficasse mais tempo visível.
Tim não conseguia descrever o tamanho de sua vontade de acertar um murro no rosto de Dan quando o mesmo deu aquele soquinho de “e aí?” em seu ombro enquanto arrumava seu cabelo ruivo com a mão desocupada.Mas não poderia fazer isso, ao menos não logo no primeiro dia, então só respondeu ao contato com um “Tudo bem?”, apesar de nem ao menos ser amigo do garoto, e saber que o tal gesto era só parte de sua cena de entrada, afinal Daniel mostraria ser “amigo de todos” ao cumprimentá-lo, pelo fato de serem, supostamente, opostos.
Isso porque Timothy ia a escola com uma blusa qualquer, sua velha bermuda desbotada e um par de sandálias. Ele não fazia questão de mostrar o que tinha, ao contrário de seu colega de turma.
Ao chegar a sua sala, era destacável a bagunça generalizada que Dan e seus colegas causavam no “fundão”.Ele,no entanto, ignorou a baderna e se sentou na segunda fileira ao lado de Patrick, o único ali em quem ele confiava. Ao vê-lo, Patrick não apresentou aquela alegria notável que amigos mostram ao se reencontrarem nas voltas as aulas.
-Por que não me atendeu ontem a noite? –Foi logo perguntando seu colega, em um tom de indignação.
-“Noite?” Nem sequer noite era mais, quando você me ligou já eram umas três e cinquenta da madrugada. Patrick, por acaso você voltou a dormir mal? –O jovem se arrependeu logo depois de perguntar isso, pois ao olhar para o rosto de Patrick, as olheiras enormes dele já o respondiam.
-Voltei a ter aquele sonho.
-O do javali?
-É cara, aquele bicho não para de me perseguir, e mesmo depois que a primeira bala me acerta, ele não para de atirar. Acho que eu estou ficando louco.
-Nunca relacionou o fato de você caçar todo final de semana com esse seu pesadelo?
-Claro que não. Nada a ver. Mas de uma coisa eu sei, esse sonho quer me passar alguma coisa.
-Ah, sei...
Continuaram a conversar por alguns minutos antes do professor de álgebra entrar, alternando a conversa entre filmes que haviam visto e programas que haviam feito nas férias. Tim viajará para Polônia e visitará o campo de Auschwitz -hoje em dia restaurado e transformado em um Museu- programa que julgava o pior que havia feito nos últimos anos. Não conseguia entender o porquê de aquele lugar ser um ponto turístico, sendo que todos diziam achar o holocausto uma atrocidade.Apesar de achar válida a ideia de se importarem com a conscientização histórica, ele não podia deixar de pensar que alguns sentiam prazer ao saber que estavam pisando onde milhares de pessoas morreram.
Naquele dia, a sala dos dois ainda teria aula de geografia,história,inglês e a preferida de Tim, literatura. Achava extremamente cativante analisar as metáforas e simbologias contidas nos livros para depois compartilhar com os demais, enquanto passava a mão na raíz de seus cabelos, que mantinha sempre cortados no máximo, por achar desconfortável ter que lavá-los e penteá-los para não ficarem na frente de seu rosto.
Começariam a ler “Admirável Mundo Novo”, livro que Timy já havia lido e adorado, por acreditar que as drogas descritas por Aldous Huxley para controlar a população não diferiam muito do que os meios de comunicação fazem, ensinando as pessoas que serão boas o suficientes se comprarem determinados produtos. Ele olhava de relance para o canto esquerdo da sala onde Daniel cochilava e concluía que o garoto ruivo poderia ser considerado um drogado, apesar do mesmo não aparentar usar nenhuma substância como maconha, cocaína e derivados.
Ao final da aula, Timy e Patrick conversariam mais um pouco na porta da escola antes de se despedirem:
-Quer comer em algum lugar hoje? Sei lá, ao menos sair para dar uma animada–Perguntou Timothy
-Não estou muito afim, acho que vou tentar descansar um pouco, talvez aquele javali não me alcance hoje. Vai aonde agora?
-Bem, planejava ir comer em algum lugar, mas como você não está muito animado e não tenho outra companhia, acho que vou almoçar em casa mesmo. Depois eu vou a Igreja dar uma ajuda como catequista. Se quiser vir junto...
-Fala sério Bowie, você sabe que não acredito em Deus.
Tim percebeu a tentativa de provocação de Patrick ao chamá-lo pelo apelido e ignorou com desgosto.Não que não gostasse de possuir heterocromia –até achava bonito seu par verde e castanho-,mas detestava ter sua imagem associada a outro nome.Preferia ser lembrado somente como ele mesmo.
-Patrick, realmente não te entendo. Além de não se importar com esses idiotas que querem impor seu modo de agir, fica dando uma de cético. Geralmente, a pessoa ou escolhe, ou opta pelos dois.Não sei como consegue viver.
-Na verdade, Tim, eu não consigo viver.Mas pra falar a verdade....,acho que também não consigo morrer.
Patrick estampou seu característico sorriso cínico em seu rosto, e em seguida olhou para o relógio.
-Então cara, deu a minha hora.Vou indo.Até mais
Patrick então atravessou a rua e se pôs a caminhar até a sua casa que ficava a algumas quadras, enquanto mexia em seus longos e despenteados cabelos negros.
Timy permaneceu lá até o ônibus chegar.Porém, enquanto esperava, não pode deixar de notar um vendedor de cachorro-quente ambulante que vendia seus lanches gordurentos a algumas crianças. A roupa que ele usava era arrepiante, um macacão amarelo estilo “Ronald McDonald” e uma máscara vagabunda de papelão com um sorriso pintado com tinta branca e vermelha.
Em meio as crianças, era destacável um rapaz careca de sua idade, usando um terno e fedora pretos, óculos escuros redondos com hastes finas, e uma gravata branca com um caranguejo vermelho estampado na ponta.O jovem sorriu na direção dele exibindo seus dentes sujos de molho curry, ao perceber que estava sendo observado.Ao perceber que ele havia notado seu olhar desconfiado, Timmothy entrou rapidamente no ônibus que acabara de chegar. Quando já dentro do veículo, olhou pela janela na direção do carrinho do vendedor ambulante para ver se o garoto ainda o observava, no entanto o mesmo estranhamente já não estava mais lá como a alguns segundos atrás.
Era impossível não ficar nervoso depois do estranho ocorrido. Nem mesmo durante o almoço Tim se mostrou calmo, chegando a preocupar a sua mãe.
No entanto, ao chegar a sua igreja o jovem sossegou no mesmo momento. Lá era o único lugar que realmente lhe dava paz de espirito, pois sentia que dava um sentido verdadeiro para a vida das pessoas, que não era lutar para conseguirem coisas fúteis como mansões, Lamborghinis ou roupas de marcas caras.
Desta vez porém, ao chegar na sala localizada no andar de cima onde costumava dar aula, levou um susto ao se deparar com uma mulher linda de olhos violetas, sardas discretas no rosto e longos cabelos negros, que lixava suas unhas pintadas de esmalte vermelho escarlate.
-Boa tarde, Timothy. Sou a nova catequista.Daremos aula juntos hoje -Disse ela, com seu visível sorriso imponente.