Capítulo 01
Fogo. A única coisa que via. Nada mais. A casa estava em chamas.
O cheiro de queimado penetrou o meu nariz e impregnou no meu corpo.
Eu corri. Corri o mais rápido que pude. Mas não adiantou.
Ele já estava atrás de mim.
Aquele cara.
Aquela coisa não humana.
Pelo menos, aquilo não era humano para mim.
Seus olhos carmesim brilhavam, direcionados a mim.
Meu pequeno fôlego estava acabando, mas me esforcei para conseguir seguir em frente – correndo – um pouco mais.
Eu escorreguei. Cai de cara no chão. Não no chão, exatamente. Foi numa mesa de vidro – que não sei como chegou neste lugar. Estávamos no meio do nada. Numa floresta localizada atrás da minha casa.
E aquele cara me alcançou. E ia me matar se não fosse por ela.
Aquela garota.
Ela me salvou.
Mesmo assim, vi aquele corpo ensanguentado, evaporando no chão. Queimando.
Ela me olhou com aqueles vermelhos e brilhantes olhos. E me encarou.
Esticou a mão. Como se fosse para eu pegar nela.
Seus cabelos flamejantes e seu corpo belo e bem definido me pegaram de jeito.
Não sabia o que fazer.
Estava tremendo de medo.
Quer dizer, que podia fazer?
Nada.
Meu corpo continuou tremendo. E ficamos no encarando.
O corpo na minha frente tinha acabado de se desvanecer. A fumaça de seu corpo com o do fogo da casa se juntaram num cheiro desagradável e sufocante.
- Venha. – disse, por fim, me dando a mão. – Eu posso te salvar.
Fiquei parado. Não pude fazer nada. Meu corpo não se movia.
O horrível cheiro que inalava começou a queimar minha garganta. O que significa que morrerei se não sair de lá.
Mas o que isso importa? Todos estão mortos.
Sim. Eu perdi tudo e todos. Do que adianta fugir? Se for para me deparar com uma situação pior ainda.
- Venha. Eu posso te salvar. – repetiu a garota. – Eu posso salvar sua alma. – completou, com palavras diferentes. Algo que não pude entender.
Fiquei a encarando, com uma cara de dúvida.
Algo escapou por dentre meus lábios. Algo que não consegui saber direito.
A garota se aproximou de mim. Se agachou, para ficar a minha altura. Suas delicadas, finas e pálidas – mas, ainda sim, frias e belas – mão encostaram o meu nada chamativo ombro.
Seus lábios se encontram com os meus.
Sim. Ela me beijou.
Foi um beijo caloroso. Não sei se foi por causa do fogo que envolvia a casa, ou as chamas que embelezavam seus cabelos, ou ao menos se foi o próprio beijo.
Seus olhos escarlates no momento estavam fechados – o que indicava um afeto por mim. Não sei como ela me conheceu, ou como me encontrou, ou porque está me beijando – e realmente prefiro não saber.
- Há coisas nesse mundo que não devem existir – a garota agora havia separado seus lábios de meu rosto e sussurrado bem de leve nos meus ouvidos. O que tornou o momento meio sensual, apesar de tudo o que estava acontecendo. – Nós devemos exterminá-las.
Arregalei meus olhos e me perguntei o motivo do “nós”. Mas não consegui demonstrar isso em palavras. Estava assustado demais com a situação. Seja lá o que for, parece ser muito complicado para alguém como eu.
- Esse homem não merecia existir. – completou. Suas doces mãos apertaram as minhas, e ela me levantou. Sem fazer muita força. – Eu posso te dar poder.
Essas palavras foram o suficiente para me fazer cair novamente. De joelhos.
Mas já me sentia fraco. Sabe, por causa da fumaça. Senti meu peito queimando. Comecei a chorar de dor.
Me joguei no chão para a aliviar um pouco, mas não obtive muito sucesso.
A agonia de se sentir queimando até a morte.
Já estava vendo tudo embaçado quando a garota se deitou com cuidado sobre mim e me deu outro beijo. Um beijo quente. Mas não pude senti-lo muito bem. Não o recusei, mas também não o correspondi. Ou melhor, não me movi.
- Eu te amo. – a garota falou a última frase que pude ouvir. – Agora, durma. – completou, com outro beijo. Um rápido, desta vez.
Comecei a sentir minhas pálpebras pesadas e fechei meus olhos.
Logo cai no sono.
Não me lembro de ter sonhado com nada. Somente um vazio.
Na verdade, só tem uma coisa que marcou aquele vácuo. Um pequeno fogo azulado. As chamas esquentavam todo aquele lugar escuro e frio. Me lembro de ter me aproximado deste. Eu pude tocá-lo. Mesmo assim, não me queimava.
Aquele fogo não podia me queimar.
Eu sorri.
Pela primeira vez na vida, eu sorri. Mesmo dentro de um sonho.
Foi neste momento em que acordei dentro do meu desorganizado quarto.
As paredes de concreto pintadas de um claro tom de azul me cercavam. Estava tudo no lugar. Nada de fogo, fumaça ou garotas demoníacas me beijando ou caras maus vindo à minha direção. Mas aquela garota ficou na minha memória.
Acho que tem algo que preciso explicar. É necessário para entender o que está passando.
Duas coisas:
Primeiro, aquilo com certeza não foi só um sonho. Foi muito real para ser um;
Segundo e último, tudo o que eu sonho, por mais idiota que seja, se torna realidade.
É assim desde que nasci. Por mais inocente, por mais maldoso, por mais louco que seja, acontece. Basta eu ter criatividade suficiente e – pronto, num passo de mágica, se realiza.
Porém, tem uma coisa que eu nunca entendi.
Se tudo o que eu sonho acontece ou se eu sonho com o que vai acontecer.
Pode não parecer, mas são coisas bem diferentes.
Vamos deixar isso de lado. O que eu quero dizer, no momento, é que essa droga de sonho vai acontecer na vida real. Quero dizer que vai acontecer um acidente e todos que eu tenho vão morrer e vou perder tudo – não como se tivesse muita coisa, mas enfim. Quero dizer que aquela garota vai aparecer e fazer sabe lá o quê comigo – antes e depois de eu desmaiar. Quero dizer que aquele cara vai aparecer para tentar me matar.
Mas, o que eu posso fazer para evitar isso? Nada. É simples assim.
Quando, um dia desses, estava passeando pela rua, uma velha mal-encarada simplesmente me disse uma coisa bem estranha.
- Quando o destino foi decidido, nada poderemos fazer para evita-lo. O destino é inevitável, e já está aqui.
Eu realmente não entendi aquelas palavras no momento – mas agora parece que elas fazem sentido.
Talvez elas querem dizer que o que eu sonho já está destinado – então não pode ser mudado.
O que quer dizer que eu não posso fugir disso.
O que quer dizer que eu não posso evitar encontrar aquela garota.
O que quer dizer que, não importa o que fizer, nada poderá ser evitado.
O que quer dizer que eu perderei tudo.
Mas... e se eu puder, de algum jeito, evitar isso?
E se... eu fugir?
Talvez, já como o cenário é esta casa, se eu ir para um lugar afastado, nada acontecerá.
Mas, se eu por acaso voltar para casa... Então não poderei evitar. Tudo estará perdido.
O que quer dizer que eu terei que abandonar tudo.
O que quer dizer que, de qualquer forma, eu perderei tudo.
Talvez a velha estivesse certa, o destino não pode ser evitado.
Mas decidi ignorar isso. Melhor aqueles que eu amo vivos – mas longe de mim – do que mortos.
Será?
Será que, mesmo se for embora daqui, encontrarei a garota? Ou o cara que tentou me matar?
Decidi não pensar nesse caso. Bem, eu não frequento a escola. Acho uma tortura – o bastante para parar de ir a ela em menos de uma semana, em cada ano. Na verdade, sou matriculado numa pública, mas só não a frequento.
O que quer dizer que não tenho amigos, tirando os meus de infância. São dois. Alice e Rick. Não os vejo há, bem... nove anos. Eu tenho dezesseis, e a última vez que os vi foi no meu aniversário de sete anos. Nós sempre conversávamos, brincávamos e tudo mais. Com sete anos, comecei a “frequentar” a escola e também fugir dela, o que diminuiu o nosso contato. Melhor dizendo, nunca mais os vi.
Eles devem estar crescidos agora. Alice sempre teve seus lindos e sedosos cabelos ruivos lisos e ondulados nas pontas, sua pele branca como neve – mas seus olhos sem cor aparente e seus lábios destacados a faziam ser a garota mais linda que já vi. Mas não sei como está no momento. E prefiro não saber. Os dois na verdade.
Pensei em Rick, com seus cabelos encaracolados e curtos, cobrindo somente a área superior da cabeça – não a de trás – e, sendo irmão de Alice, não preciso falar novamente.
Pensei em Alice.
Pensei nos dois.
Pensei em como se sentiriam se os deixasse, mesmo sem eles saberem.
Pensei em como me sentiria se soubesse que os dois morreram por minha causa.
Tipo, eles moram na casa em frente a minha. Mas, mesmo assim, nunca os vejo.
Talvez eles estejam me ignorando. Me evitando. Não sei.
E agora talvez deva falar sobre os meus pais. Eu moro com minha mãe. Ela é separada, mas meu pai vem me visitar todo fim de semana. Na verdade, ele vem me buscar para jantarmos. Nunca fala com minha mãe. Que trabalha todos os dias – menos domingo, porém fica no computador trabalhando -, e sempre sai de casa antes de eu acordar e volta depois de já ter ido dormir. Quase nunca a vejo. E provavelmente não está aqui no momento.
O que quer dizer que eu posso fugir, sem ninguém notar.
O que quer dizer que, se eu fugir, irei preocupar minha mãe, meus vizinhos. Todos. Não que alguém além de meus pais se preocupem comigo. Porque não se importam.
Nem pensei direito. Só na segurança de todos.
Peguei uma bolsa e coloquei lá dentro tudo o que precisava. Uma mala pequena com poucas coisas. Não tenho quase nada, acho que tudo dentro do meu quarto cabe lá. E também separei uma mala para colocar meu computador e meu celular – com carregador – dentro.
Tomei um banho rápido e me arrumei como se fosse sair por aí. Assim, pelo menos ninguém notaria que estava fugindo.
Peguei as duas malas pequenas e sai pela rua. Fui para a floresta localizada atrás da minha casa e comecei a caminhar em direção ao horizonte – até o lugar onde podia ver. Não parecia ser muito distante, e provavelmente seria visto de lá.
Comecei a correr, para ninguém me ver fugindo. Quando cheguei num ponto onde – quando olhei para trás – percebi que não podia mais ver a minha casa, ou os altos edifícios, parei de correr. De andar, na verdade. Tomei fôlego.
Lembrei, por um momento, do sonho que tive, da casa pegando fogo. Da fumaça que me agonizava.
Foi quando me decidi esquecer de tudo. Da minha vida. Decidi não me preocupar mais com nada. Decidi esquecer do sonho Decidi esquecer do amor que sentia por meus pais. Decidi... seguir em frente como uma pessoa diferente.
Isso mesmo. Josh Andrews não existe mais.
Agora, serei somente Josh.
E comecei a caminhar em direção ao horizonte – sem um destino.
Parei algum tempo depois de me afastar completamente dos limites da cidade. Não podia ver nada, a não ser pelas fracas luzes dos raros carros passando pela estrada ao meu lado; não podia ouvir nada, a não ser pelo irritante barulho da chuva que atualmente molha meus negros cabelos.
Os trovões estavam cada vez mais fortes, uma tempestade estava por vir. A gélida chuva provavelmente me deixaria doente – já estava sentindo vontade de espirrar. Minha garganta doía. Minha pele se arrepiava pelo frio. Meus lábios estavam cortados.
Já estava quase entrando em desespero quando vi uma caverna – na verdade, um baixo monte de um tipo de terra que não estava virando lama com a água. Decidi me abrigar lá, até a chuva passar.
Já havia anoitecido. Muito tempo se passara desde que sai da minha casa.
Por um momento, fiquei com medo de nunca mais ver aqueles que amo.
Por um momento, lágrimas caíram dos meus olhos azuis como o céu.
Por um momento, fiquei com saudade de tudo aquilo que deixei para trás.
Comecei a pensar em tudo isso. Uma pontada de medo fez meu estômago doer.
A névoa causada pela chuva me impedia de ver alguma coisa a, pelo menos, dez passos a minha frente. O que me preocupava, já que podia ter alguém, ou algo, na minha frente e eu não ver.
Como aquele cara.
Me pergunto se poderei escapar do que ele irá fazer com todos que conheço. Será? Bem, no meu sonho, o cara destruiu toda a cidade – ou pelo menos uma parte dela.
Eu me perdi nas ilusões e pensamentos que me dominavam. Nem ao menos notei que adormeci em meio ao barulho dos pingos de chuva – e brisas refrescantes.
Desta vez, o meu sonho foi diferente.
Não teve fogo. Não teve aquele cara. Não teve morte. Mas teve aquela garota.
Eu estava numa rua – provavelmente a que estou seguindo paralelamente. Atrás de uma placa de para. Meu corpo estava paralisado. Não pude me mover – nem piscar os olhos ou respirar. Mas, mesmo sem respirar ou piscar, me sentia bem. Como se nada pudesse me deter.
Mas pude mexer meus olhos. E olhei para o grande mar que envolvia Los Angeles. Notei que estava em alguma altura da SR-1. Olhei para o céu azul, encoberto por nuvens – como se houvesse acabado de chover. Foi quando notei aquela garota.
Lá estava ela, parada em frente ao mar, com seus lindos cabelos ruivos e olhos vermelhos escarlate. Voltados para mim. Seu rosto estava com uma expressão preocupada, apaixonada e sorridente ao mesmo tempo. Seu belo sorriso branco fez com que eu sentisse meu rosto ficando vermelho.
Seus olhos estavam me encarando com compreensão. O que me deixou boquiaberto. Seu vestido negro com uma curta saia rodada me fazia lembrar os tempos vitorianos – que via muito nas fotos da minha vó, quando era criança. Provavelmente um estilo Gothic Lolita.
Por um momento, eu me lembrei de Alice.
Seu rosto, sua pele pálida, sua magreza, seu estilo de roupas eram idênticos – mas pensei que seria somente uma coincidência.
Mas, mesmo assim, não consegui me mover. A garota veio em direção a mim. Caminhou, com seus lentos passos. Escalou as rochas que separam a estrada da areia que é banhada pelo mar – sem algum esforço.
Ela esticou o braço em minha direção e voltou a sorrir.
E um onibus passou entre nós.
Quer dizer, não sei se passam ônibus por essa estrada. Nunca passo por aqui com frequência, então não sei.
Mas eu sei que um deles passou por nós. Nele estava escrito as simpáticas palavras com cor de sangue: “vá para o inferno”.
Quando percebi, a garota tinha sumido. Não estava mais lá.
De repente, senti meu corpo livre. Senti minha respiração voltando. Senti o doce aroma de lavanda no ar.
Aproveitei e olhei desesperado ao meu redor. Nenhum sinal dela. Não na minha visão.
Não sei por que, mas aquilo me deixou um pouco triste. Algumas poucas lágrimas começaram a cair dos meus olhos, deslizando por minhas bochechas e entrando pela minha boca meio fechada, meio aberta – me fazendo sentir um desagradável gosto salgado.
Eu desejei vê-la. Uma vez mais.
Assim como desejei rever Alice.
Sem perceber, ela apareceu por trás de mim e agarrou minhas costas. Não do tipo agarrou, mas sim “abraçou com força”.
Meu corpo paralisou novamente. A garota foi para a minha frente e me deu um delicado beijo. Foi rápido, mas com muito amor.
Ela me abraçou – sem muita força, desta vez.
- Eu te amo. – repetiu o que disse para mim, no último sonho. – Não deixarei nada acontecer com você.
Mais uma vez, não entendi o significado daquelas palavras. Na realidade, parecia não estar entendendo o significado de nada.
Porém, parece que o fato de não ter feito nada foi o suficiente para ela me beijar outra vez. Outro beijo caloroso, afetuoso.
Dos seus olhos, caíram lágrimas carmesim.
- Você quer que eu te salve? – perguntou ela.
Não pude responder. Acho que já sabem porque.
A garota tocou meu pescoço com suas mãos bem definidas. Examinou cada centímetro do meu rosto.
- Então me dê... Me dê a sua alma.
A única coisa que queria fazer no momento era fugir. Mas não podia. Não conseguia.
- Você pode fugir se quiser. – explicou. – Só não consegue pelo fato de que me ama.
E ela mordeu o meu pescoço com muita força, fazendo o sangue escorrer.
E eu acordei.
Quando acordei, já era de manhã. A chuva tinha parado. Porém, a névoa ainda cobria a aberta mas escura floresta.
Sai do meio daquela terra esquisita. Ouvi calmamente o som dos animais que habitam o lugar. Suspirei.
E ouvi o barulho de algum deles rosnando. A neblina por causa da chuva de caíra ainda estava muito densa, então não pude ver o que era. Mas pude ver as formas. As formas do que me pareceu um lobo.
Não demorou muito para eu começar a correr o mais rápido que pude. O que foi idiotice – já que o animou começou a me seguir, correndo também. E logo, ele estava quase me tocando.
Um piscar de olhos foi tempo o suficiente. Tempo o suficiente para o grande lobo me derrubar e morder a minha barriga. Senti o sangue jorrando de dentro de mim.
A aguda dor que o ferimento causado por ele me fez gritar.
Ah, é hoje.
É hoje que vou morrer.
Mas não por aquele cara. Mas sim por um simples lobo.
Digo, simples e perigoso.
Pelo menos, foi o que pensei.
Durou o mesmo tempo que o ataque do animal. Em outro piscar de olhos, eu a vi.
Eu vi aquela garota.
Eu vi os seus vermelhos olhos.
Eu vi os seus belos cabelos.
Eu a vi.
E ela estava com a cabeça do lobo na mão esquerda. Pingando sangue.
Ela olhou para mim e sorriu.
Ela me salvou.
A garota soltou a cabeça no chão e caminhou tranquilamente até mim. Como se nada tivesse acontecido.
Esticou a mão para mim, para me ajudar a levantar. Desta vez, eu pude me mover. Toquei minha mão na sua palma. A menina a apertou e me levantou, sem nenhum cuidado ou esforço.
- Eu não disse? – começou. – Eu vim por você.
E se inclinou para me dar um beijo.
Um beijo real.
O meu primeiro beijo.
E foi assim que eu encontrei o meu destino.