Capítulo I - Mundos
Spoiler :
Por onde eu posso começar para entender tudo o que está havendo? Talvez eu devesse reconstituir o meu dia, para tentar chegar a alguma conclusão. Ou melhor, algumas horas antes são mais do que suficientes. Aí talvez eu possa entender a razão pela qual eu estou aqui, acorrentado. Não consigo ver nada que esteja um palmo a frente do meu nariz. Posso apenas ouvir o vento forte atravessando violentamente algumas frestas. E sinto alguns ratos correndo próximos ao meu corpo. Enquanto minha visão não se adapta ao escuro, eu tento refletir sobre todos os ocorridos.
Apesar de me focar, só consigo recordar-me de luzes brancas ofuscando meus olhos. E de estar deitado em algo. Algumas vozes que não me eram familiares também me vem à mente. Talvez eu devesse forçar um pouco mais, poderia obter algo. É tudo uma simples questão de concentração.
- Então, com base nos estudos hoje feitos sobre a coluna vertebral, estarei aguardando para a próxima semana um trabalho citando e explicando as características regionais da mesma. E é claro...
Quanto mais a aula está próxima de acabar, parece que o tempo se alonga mais e mais. Não é que eu seja um péssimo aluno, ou não goste das aulas de anatomia que tenho na faculdade. Mas é que, considerando que hoje é sexta-feira, com a noite quase chegando e a minha terrível enxaqueca, eu não estou com nem um pouco de paciência para isso. E a voz dele continua se esvaindo, aos poucos some, como tudo a minha volta. Os olhos se fecham e eu estou perdido em pensamentos, entregue a um mundo de surreal. A mente governa nesse mundo. E eu corro em direção ao nada, sem rumo, sem preocupação.
E repentinamente, fui puxado de volta para o inferno ao qual nós somos obrigados a participar. As vozes, as mesmas vozes com os mesmos assuntos fúteis. Assuntos que não me interessavam, pois fazem parte de uma vida ao qual não fui designado. Coisas que não seriam proveitosas para o mundo e, egoísmo a parte, não seriam proveitosas principalmente para mim.
- Que tal uma festa hoje, Damon? – Um amigo. Ou melhor, um daqueles que dizem ser amigos, mas o abandonam na primeira oportunidade. E ainda tem a capacidade de quebrar meu fluxo de pensamentos.
- Não, tenho coisas importantes para fazer. – Apresentei um sorriso simpático e completei a frase. – Aproveite. – Para viver em um mundo de idiotas, aprenda a conviver com os mesmos, a agir como um deles. Não me refiro a eles pelo termo "idiota" por possuírem um intelecto inferior ao meu. Não, arriscaria dizer que alguns deles sejam talvez até mais inteligentes e bem informados, pelo menos ao se tratar deste aspecto. Mas me refiro à ingenuidade de cada um. Não poderiam achar que a vida é basicamente festas, ou poderiam?
Um suspiro tomado por indignação. E o resto do dia era aquilo. Apenas a rotina de uma vida tediosa. Material guardado, a sala finalmente vazia com exceção do professor. Agora sim, poderia ir embora. Como era de hábito meu, desço pelas escadas ao invés de optar pelo elevador, e isso se deve por dois motivos: um deles é o de simplesmente manter a boa forma, mas isso, por mais que seja verdade, não passa de uma desculpa para o segundo motivo. Evitar pessoas e vivenciar situações no mínimo constrangedoras. Sem muita demora, finalmente consegui sair do prédio da faculdade e agora estava pronto para passar pelo ponto alto do meu dia.
Chegando à loja de café, a doce fragrância imediatamente invadia meu corpo, me deixando disperso. O local era amplo, silencioso e bem aquecido. Perfeito para dias como aquele, onde o céu cinzento ameaçava chuvas fortíssimas acompanhadas de uma ventania brutal. Mas por enquanto, apenas clarões que rompiam o céu em frações de segundo, seguidos de um som levemente estrondoso. Antítese talvez, mas por mais contraditórias que sejam certas classificações, é realmente isso que está ocorrendo. E no momento em que tento explicar isso de uma forma ainda mais confusa, outro som levemente estrondoso quebrava o silêncio no local. Aproximei-me de uma mesa próxima à vidraça, permitindo a mim uma bela vista para a rua, onde eu poderia observar o ser humano como o monstro disfarçado que sempre foi. Mas antes, não poderia deixar de pegar os donuts e um copo de café expresso. Puxei a carteira de dentro da mochila e retirei uma nota. Em seguida, guardei a carteira novamente e me aproximei do caixa.
-Boa noite. O que vai querer?
A voz era diferente, não era o mesmo tom seco de sempre. Sutil, fluía leve como uma pena, apresentando um pouco de timidez. Aquilo não era habitual. Levantei o rosto e me deparei com olhos azuis claros, refletindo uma pureza quase inexistente nesse vasto mundo. Apresentava cabelos loiros um pouco bagunçados, provavelmente pela rotina de trabalho, que se destacavam por serem mais claros do que o habitual e que brilhavam conforme a luz os alcançava. A pele era sedosa, notava-se só de olhar. Pouco uso de maquiagens, talvez apenas nas bochechas que assumiam uma coloração levemente rosadas. Lábios pequenos e bem definidos em tom vermelho claro formavam um simples sorriso sincero. Sim, sincero. Era diferente de qualquer coisa que eu tenha visto. Ou ela era uma boa fingidora ou talvez realmente fosse diferente. Diferente da maneira dela. E por fim concluí de que ela era nova no local.
-Ah... tudo bem?
Novamente a voz sutil seguida de um sorriso um pouco mais alongado. Merda, eu deveria estar parecendo um retardado. – Um café expresso grande e dois Donuts de chocolate. – Entreguei o dinheiro, a pele era mais sedosa do que poderia imaginar, senti isso ao tocar gentilmente os dedos da moça de, arriscaria dizer embora não fosse bom nisso, uns 19 anos. Ela sorriu. Os lábios se movimentaram para pronunciar outras palavras doces. Mas por sorte, eu já havia voltado parcialmente ao normal. Normal o suficiente para poder fazer bom uso de alguns sentidos, utilizando algo que comumente chamamos de “Visão Periférica”. É por isso que eu ainda podia ter uma ideia do que ocorria atrás de mim. Não poderia distinguir a aparência do indivíduo, não daquela distância, mas era perfeitamente capaz de notar que o babaca estava naquele exato momento colocando as mãos na minha mochila. Ele correu e a ligação entre mim e a suavidade que havia no toque do meu dedo com os dela rompeu-se.
Ele já estava perto da porta quando eu comecei a correr. Seguir o homem de casaco preto, luvas de couro, calça jeans suja e com alguns rasgos e usando um tênis vagabundo ao qual não pude distinguir qual seria o modelo. Apenas sabia correr. Ah sim, foi mais ou menos aí que tudo começou. Eu era rápido o suficiente para alcança-lo, mas creio que a sorte já não era a mesma coisa. Ele atravessou a rua movimentada, tendo a audácia necessária para se esquivar dos carros. Se fosse tudo uma simples questão de habilidade, eu também poderia, mas ia além. O som estridente da buzina em perfeita simetria com o leve e estrondoso som do trovão. O carro também era preto. E o sangue, para a minha surpresa, também era vermelho. O que veio em seguida foi escuridão.
A escuridão permanecia, mas agora também havia correntes. E já era tempo o suficiente para a visão ter se adaptado parcialmente à escuridão. Podia ver que havia outra pessoa um pouco mais longe, encontrava-se na mesma situação que eu. Acorrentado e vestindo alguns pedaços de trapo gasto. Porém, estava desacordado. Havia notado o chão que era, boa parte, apenas areia. E conforme a consciência regressava o odor de fezes e urina fortalecia conforme os segundos passavam. Um pouco de cãibra na perna direita, ratos passeando pela esquerda e finalmente vi o balde que deveria servir como depósito para dejetos. E não muito distante, o corpo de um homem em decomposição.
- Isso é um sonho. Tem que ser. Mas é muito real para ser um sonho. Talvez seja apenas um sonho lúcido – Sonho lúcido era a única coisa na qual eu depositava esperança. A arte de sonhar e ter consciência disso, podendo vive-los, fazer o que quiser. O mundo da subconsciência em suas mãos. – Mas se fosse isso, eu poderia me soltar com facilidade.
Lentamente ecoou um ruído. Pedras se rastejavam e um pouco de luz invadia o local. Uma porta. E havia alguém atrás dela, isso qualquer um poderia notar. Ao abrir-se por completo, fui cegado momentaneamente pelo brilho do sol.
- Peguem os dois. – A voz era grossa, impunha medo. Ainda não poderia ver direito o que acontecia, mas ouvi o som de água se despejando sobre alguém, e logo em seguida, um despertar desesperado. – Acorde o outro.
Foi minha vez de tomar um banho de água gelada. E foi uma sensação extrema de alívio, como se estivesse sem água por dias. Senti um chute nas pernas. Finalmente podia ver um pouco melhor. Havia uma espécie de soldado na porta, provavelmente o líder. Do outro lado, o homem anteriormente desacordado, agora se levantava com um pouco de dificuldade. O outro que estava perto de mim soltava as correntes. Após isso, levei outro chute que veio acompanhado de um grunhido, provavelmente um xingamento.
Ao me erguer, notei que a perna ainda estava acorrentada, assim como os braços, mas ainda poderia me mover. O outro homem se encontrava na mesma situação.
-Levem-nos para fora. – A voz do líder novamente.
Um empurrão foi o suficiente para me fazer andar em direção à luz. Sim, a luz. Mais uma vez me deixando como um cego. Portanto, o que me surpreendeu mesmo foram meus ouvidos. Pude ouvir o som de um grupo enorme de pessoas gritando desordenadamente. Aos poucos recuperava a visão e me deparei com um cenário que eu nunca havia visto antes. Eu diria que era uma espécie de arena. Não era tão grande quanto cambos de futebol americano, mas de fato era bem espaçoso, e abrigava um bom número de pessoas. O outro homem parecia tão desorientado quanto eu. Um soldado se encontrava atrás dele e outro atrás de mim. Ambos soltaram nossas correntes e se retiraram. A multidão ainda gritava, mas eu só podia admirar a estrutura do local. Uma pessoa normal sem dúvidas estaria pensando em algo como “que lugar é este?”. Mas estava assustado e confuso demais para poder pensar em algo assim. Então me focava ao meu redor. Nos dois extremos da arena havia portões de ferro e atrás de mim o de pedra, de onde havia acabado de sair. Algumas estátuas nas quatro extremidades da arena, todas feitas de um material ao qual não reconheci. E então um homem ergueu-se de um trono, estendendo o braço. Ele olhou para nós dois. Não podia dizer muito sobre ele daquela distância, só de que era robusto e seu cabelo era escuro e bagunçado. Então resolvi olhar para mim. As vestes eram a mesma do home ao meu lado, que possuía cabelo curto castanho. Nós dois estávamos sujos e encharcados. Passei a mão pelo rosto e senti um pouco de barba crescendo. E então finalmente cheguei ao destino que já deveria ter chegado bem antes.
-Mas que merda é essa? – Minha única resposta foi absoluto silêncio. E então o homem do trono, provavelmente algum rei, se pronunciou.
- Dois homens. – A voz dele era poderosa. Ecoava por toda a arena. – Dois vermes que não honraram a terra onde vivem. À esquerda – ele apontou para o outro – nos deparamos com um homem que vem a tempos destruindo famílias. Assassino, ladrão, estuprador. Vem cometendo diversos crimes contra a sociedade por anos. Do outo – Sua mão apontou à minha direção – Um ladrãozinho imprestável que tentou roubar o próprio castelo. – Ao ouvir aquilo, minha vontade foi de dizer que aquilo era um engano, mas não acreditariam em mim, sem dúvida. – Ambos são seres abomináveis. Mas como é de costume nosso, a cada dez anos, para darmos início à nossas festividades, nada melhor que uma batalha. Dois homens entram e apenas um sai. O vencedor terá o direito de sair vivo desta terra. Para o perdedor, uma viagem sem volta à Terra dos Mortos. Sem mais delongas, que comecem.
O rei se sentou, apoiando a cabeça sobre as mãos entrelaçadas. O outro homem me encarou por um momento. Eu não saberia o que fazer. Ouvi o som de aço próximo de mim. Nós dois olhamos para o lado e nos deparamos com uma única espada já um pouco gasta.
-Porra... – Tantas palavras em minha mente. Apenas essa chegou a minha boca.
O outro correu até a arma, me deixando sem nenhuma chance de alcançá-la. Ele a ergueu enquanto estava sendo tomado pelo desespero e lentamente veio à minha direção. Permaneci imóvel, apenas observando qual seria a reação dele. A multidão gritava enquanto meu adversário apenas se aproximava, com um sorriso insano em seu rosto. Ergui o braço até a altura do rosto, montando uma base de luta. A multidão anteriormente inquieta, calou-se repentinamente. Visão periférica. Podia ver o suposto rei e mais alguns outros rostos expressando imensa curiosidade. Deveriam achar bizarro, deveria estar em uma época em que ainda não se conheciam artes marciais. Sim, eu treinava todos os dias de manhã, em um dojo próximo à minha casa. Era o único tipo de defesa que eu conhecia e, humildemente falando, era muito bom nisso. Mas eu não sabia onde estava, não sabia o que fazer e havia um homem com um olhar assassino segurando uma espada e vindo até mim. Além disso, eu ainda estava confuso e com medo. Também estava sendo tomado pelo cansaço. Mas sabia que iria ter que agir se houvesse necessidade. E haveria, certamente.
- Vai ficar parado, garoto? – Ele disse, sua voz estava rouca, provavelmente por sede. – Assim se torna mais fácil para eu acabar com você.
Uma investida rápida dele, segurando a espada em uma posição horizontal. Fácil de escapar. Apenas uma jogada de corpo para o lado e o inimigo passou direto por mim. Completava o movimento com um giro suave e as costas estariam desprotegidas. Ele não possuía base. A mão direita se ergueu levemente, aberta. E me deparei com o movimento perfeito. Um pouco de impulso. O movimento perfeito. Combinação de velocidade e força, um ataque certeiro à 2ª costela, atípica. Um estalo seguido de um gemido de dor, mas ele permaneceu de pé. Novamente ergueu a lâmina e tentou outro ataque, dessa vez vindo de cima. Lento demais, guarda aberta. Punho esquerdo cerrado, um soco potente fazendo pressão ao diafragma e ele ficou sem ar em questão de segundos. Apesar do pouco espaço, um movimento dianteiro, utilizando o pé direito para acertar um chute forte na rótula direita. Sem ar e com uma perna inútil, ele derrubou a espada e caiu desajeitadamente no chão, tentando se apoiar. Um golpe com o joelho quebrou-lhe o nariz, espalhando uma enorme quantidade de sangue. O homem agonizava no chão, mal podendo se mexer, mal podendo respirar. Afastei-me e olhei para o homem ao trono, que fez um aceno com a cabeça, indicando que deveria finalizá-lo. Também fiz um aceno, mas negando a sua ordem e pus-me a me aproximar de um dos portões.
- Se você não mata-lo, você morre. Creio que isso será uma grande desvantagem para você. Ele venceria devido à sua desvantagem, mas nas condições em que se encontra, provavelmente não durará muito tempo aqui. Não se depender das pessoas do reino. Então, ou um morre, ou os dois morrem.
O encarei com frieza. Nunca havia feito isso antes e não me sentia bem em fazê-lo agora. Olhei para o homem no chão e me aproximei novamente dele. Não havia escolha. Ou havia? Já teria passado por situações complicadas, poderia passar por isso.
- Se não mata-lo em dez segundos, me assegurarei que meus arqueiros o façam. E isso consequentemente o acertará. – Olhei a minha volta e notei o incrível número de homens carregando arcos e flechas. Todos preparados, apontados para nós. – 10, 9, 8...
Fechei os olhos. Nada daquilo era real. Eu sofri um acidente, era apenas um sonho. Sonho lúcido.
-7, 6...
Um rápido movimento de cima pra baixo com o pé, contra a cabeça daquele homem. Um estalo. Uma última respiração. Uma multidão enlouquecida pela demonstração de homem primitivo. Eu ainda não sabia onde estava.
Apesar de me focar, só consigo recordar-me de luzes brancas ofuscando meus olhos. E de estar deitado em algo. Algumas vozes que não me eram familiares também me vem à mente. Talvez eu devesse forçar um pouco mais, poderia obter algo. É tudo uma simples questão de concentração.
Dia 1, aproximadamente 17:51.
- Então, com base nos estudos hoje feitos sobre a coluna vertebral, estarei aguardando para a próxima semana um trabalho citando e explicando as características regionais da mesma. E é claro...
Quanto mais a aula está próxima de acabar, parece que o tempo se alonga mais e mais. Não é que eu seja um péssimo aluno, ou não goste das aulas de anatomia que tenho na faculdade. Mas é que, considerando que hoje é sexta-feira, com a noite quase chegando e a minha terrível enxaqueca, eu não estou com nem um pouco de paciência para isso. E a voz dele continua se esvaindo, aos poucos some, como tudo a minha volta. Os olhos se fecham e eu estou perdido em pensamentos, entregue a um mundo de surreal. A mente governa nesse mundo. E eu corro em direção ao nada, sem rumo, sem preocupação.
E repentinamente, fui puxado de volta para o inferno ao qual nós somos obrigados a participar. As vozes, as mesmas vozes com os mesmos assuntos fúteis. Assuntos que não me interessavam, pois fazem parte de uma vida ao qual não fui designado. Coisas que não seriam proveitosas para o mundo e, egoísmo a parte, não seriam proveitosas principalmente para mim.
- Que tal uma festa hoje, Damon? – Um amigo. Ou melhor, um daqueles que dizem ser amigos, mas o abandonam na primeira oportunidade. E ainda tem a capacidade de quebrar meu fluxo de pensamentos.
- Não, tenho coisas importantes para fazer. – Apresentei um sorriso simpático e completei a frase. – Aproveite. – Para viver em um mundo de idiotas, aprenda a conviver com os mesmos, a agir como um deles. Não me refiro a eles pelo termo "idiota" por possuírem um intelecto inferior ao meu. Não, arriscaria dizer que alguns deles sejam talvez até mais inteligentes e bem informados, pelo menos ao se tratar deste aspecto. Mas me refiro à ingenuidade de cada um. Não poderiam achar que a vida é basicamente festas, ou poderiam?
Um suspiro tomado por indignação. E o resto do dia era aquilo. Apenas a rotina de uma vida tediosa. Material guardado, a sala finalmente vazia com exceção do professor. Agora sim, poderia ir embora. Como era de hábito meu, desço pelas escadas ao invés de optar pelo elevador, e isso se deve por dois motivos: um deles é o de simplesmente manter a boa forma, mas isso, por mais que seja verdade, não passa de uma desculpa para o segundo motivo. Evitar pessoas e vivenciar situações no mínimo constrangedoras. Sem muita demora, finalmente consegui sair do prédio da faculdade e agora estava pronto para passar pelo ponto alto do meu dia.
Chegando à loja de café, a doce fragrância imediatamente invadia meu corpo, me deixando disperso. O local era amplo, silencioso e bem aquecido. Perfeito para dias como aquele, onde o céu cinzento ameaçava chuvas fortíssimas acompanhadas de uma ventania brutal. Mas por enquanto, apenas clarões que rompiam o céu em frações de segundo, seguidos de um som levemente estrondoso. Antítese talvez, mas por mais contraditórias que sejam certas classificações, é realmente isso que está ocorrendo. E no momento em que tento explicar isso de uma forma ainda mais confusa, outro som levemente estrondoso quebrava o silêncio no local. Aproximei-me de uma mesa próxima à vidraça, permitindo a mim uma bela vista para a rua, onde eu poderia observar o ser humano como o monstro disfarçado que sempre foi. Mas antes, não poderia deixar de pegar os donuts e um copo de café expresso. Puxei a carteira de dentro da mochila e retirei uma nota. Em seguida, guardei a carteira novamente e me aproximei do caixa.
-Boa noite. O que vai querer?
A voz era diferente, não era o mesmo tom seco de sempre. Sutil, fluía leve como uma pena, apresentando um pouco de timidez. Aquilo não era habitual. Levantei o rosto e me deparei com olhos azuis claros, refletindo uma pureza quase inexistente nesse vasto mundo. Apresentava cabelos loiros um pouco bagunçados, provavelmente pela rotina de trabalho, que se destacavam por serem mais claros do que o habitual e que brilhavam conforme a luz os alcançava. A pele era sedosa, notava-se só de olhar. Pouco uso de maquiagens, talvez apenas nas bochechas que assumiam uma coloração levemente rosadas. Lábios pequenos e bem definidos em tom vermelho claro formavam um simples sorriso sincero. Sim, sincero. Era diferente de qualquer coisa que eu tenha visto. Ou ela era uma boa fingidora ou talvez realmente fosse diferente. Diferente da maneira dela. E por fim concluí de que ela era nova no local.
-Ah... tudo bem?
Novamente a voz sutil seguida de um sorriso um pouco mais alongado. Merda, eu deveria estar parecendo um retardado. – Um café expresso grande e dois Donuts de chocolate. – Entreguei o dinheiro, a pele era mais sedosa do que poderia imaginar, senti isso ao tocar gentilmente os dedos da moça de, arriscaria dizer embora não fosse bom nisso, uns 19 anos. Ela sorriu. Os lábios se movimentaram para pronunciar outras palavras doces. Mas por sorte, eu já havia voltado parcialmente ao normal. Normal o suficiente para poder fazer bom uso de alguns sentidos, utilizando algo que comumente chamamos de “Visão Periférica”. É por isso que eu ainda podia ter uma ideia do que ocorria atrás de mim. Não poderia distinguir a aparência do indivíduo, não daquela distância, mas era perfeitamente capaz de notar que o babaca estava naquele exato momento colocando as mãos na minha mochila. Ele correu e a ligação entre mim e a suavidade que havia no toque do meu dedo com os dela rompeu-se.
Ele já estava perto da porta quando eu comecei a correr. Seguir o homem de casaco preto, luvas de couro, calça jeans suja e com alguns rasgos e usando um tênis vagabundo ao qual não pude distinguir qual seria o modelo. Apenas sabia correr. Ah sim, foi mais ou menos aí que tudo começou. Eu era rápido o suficiente para alcança-lo, mas creio que a sorte já não era a mesma coisa. Ele atravessou a rua movimentada, tendo a audácia necessária para se esquivar dos carros. Se fosse tudo uma simples questão de habilidade, eu também poderia, mas ia além. O som estridente da buzina em perfeita simetria com o leve e estrondoso som do trovão. O carro também era preto. E o sangue, para a minha surpresa, também era vermelho. O que veio em seguida foi escuridão.
A escuridão permanecia, mas agora também havia correntes. E já era tempo o suficiente para a visão ter se adaptado parcialmente à escuridão. Podia ver que havia outra pessoa um pouco mais longe, encontrava-se na mesma situação que eu. Acorrentado e vestindo alguns pedaços de trapo gasto. Porém, estava desacordado. Havia notado o chão que era, boa parte, apenas areia. E conforme a consciência regressava o odor de fezes e urina fortalecia conforme os segundos passavam. Um pouco de cãibra na perna direita, ratos passeando pela esquerda e finalmente vi o balde que deveria servir como depósito para dejetos. E não muito distante, o corpo de um homem em decomposição.
- Isso é um sonho. Tem que ser. Mas é muito real para ser um sonho. Talvez seja apenas um sonho lúcido – Sonho lúcido era a única coisa na qual eu depositava esperança. A arte de sonhar e ter consciência disso, podendo vive-los, fazer o que quiser. O mundo da subconsciência em suas mãos. – Mas se fosse isso, eu poderia me soltar com facilidade.
Lentamente ecoou um ruído. Pedras se rastejavam e um pouco de luz invadia o local. Uma porta. E havia alguém atrás dela, isso qualquer um poderia notar. Ao abrir-se por completo, fui cegado momentaneamente pelo brilho do sol.
- Peguem os dois. – A voz era grossa, impunha medo. Ainda não poderia ver direito o que acontecia, mas ouvi o som de água se despejando sobre alguém, e logo em seguida, um despertar desesperado. – Acorde o outro.
Foi minha vez de tomar um banho de água gelada. E foi uma sensação extrema de alívio, como se estivesse sem água por dias. Senti um chute nas pernas. Finalmente podia ver um pouco melhor. Havia uma espécie de soldado na porta, provavelmente o líder. Do outro lado, o homem anteriormente desacordado, agora se levantava com um pouco de dificuldade. O outro que estava perto de mim soltava as correntes. Após isso, levei outro chute que veio acompanhado de um grunhido, provavelmente um xingamento.
Ao me erguer, notei que a perna ainda estava acorrentada, assim como os braços, mas ainda poderia me mover. O outro homem se encontrava na mesma situação.
-Levem-nos para fora. – A voz do líder novamente.
Um empurrão foi o suficiente para me fazer andar em direção à luz. Sim, a luz. Mais uma vez me deixando como um cego. Portanto, o que me surpreendeu mesmo foram meus ouvidos. Pude ouvir o som de um grupo enorme de pessoas gritando desordenadamente. Aos poucos recuperava a visão e me deparei com um cenário que eu nunca havia visto antes. Eu diria que era uma espécie de arena. Não era tão grande quanto cambos de futebol americano, mas de fato era bem espaçoso, e abrigava um bom número de pessoas. O outro homem parecia tão desorientado quanto eu. Um soldado se encontrava atrás dele e outro atrás de mim. Ambos soltaram nossas correntes e se retiraram. A multidão ainda gritava, mas eu só podia admirar a estrutura do local. Uma pessoa normal sem dúvidas estaria pensando em algo como “que lugar é este?”. Mas estava assustado e confuso demais para poder pensar em algo assim. Então me focava ao meu redor. Nos dois extremos da arena havia portões de ferro e atrás de mim o de pedra, de onde havia acabado de sair. Algumas estátuas nas quatro extremidades da arena, todas feitas de um material ao qual não reconheci. E então um homem ergueu-se de um trono, estendendo o braço. Ele olhou para nós dois. Não podia dizer muito sobre ele daquela distância, só de que era robusto e seu cabelo era escuro e bagunçado. Então resolvi olhar para mim. As vestes eram a mesma do home ao meu lado, que possuía cabelo curto castanho. Nós dois estávamos sujos e encharcados. Passei a mão pelo rosto e senti um pouco de barba crescendo. E então finalmente cheguei ao destino que já deveria ter chegado bem antes.
-Mas que merda é essa? – Minha única resposta foi absoluto silêncio. E então o homem do trono, provavelmente algum rei, se pronunciou.
- Dois homens. – A voz dele era poderosa. Ecoava por toda a arena. – Dois vermes que não honraram a terra onde vivem. À esquerda – ele apontou para o outro – nos deparamos com um homem que vem a tempos destruindo famílias. Assassino, ladrão, estuprador. Vem cometendo diversos crimes contra a sociedade por anos. Do outo – Sua mão apontou à minha direção – Um ladrãozinho imprestável que tentou roubar o próprio castelo. – Ao ouvir aquilo, minha vontade foi de dizer que aquilo era um engano, mas não acreditariam em mim, sem dúvida. – Ambos são seres abomináveis. Mas como é de costume nosso, a cada dez anos, para darmos início à nossas festividades, nada melhor que uma batalha. Dois homens entram e apenas um sai. O vencedor terá o direito de sair vivo desta terra. Para o perdedor, uma viagem sem volta à Terra dos Mortos. Sem mais delongas, que comecem.
O rei se sentou, apoiando a cabeça sobre as mãos entrelaçadas. O outro homem me encarou por um momento. Eu não saberia o que fazer. Ouvi o som de aço próximo de mim. Nós dois olhamos para o lado e nos deparamos com uma única espada já um pouco gasta.
-Porra... – Tantas palavras em minha mente. Apenas essa chegou a minha boca.
O outro correu até a arma, me deixando sem nenhuma chance de alcançá-la. Ele a ergueu enquanto estava sendo tomado pelo desespero e lentamente veio à minha direção. Permaneci imóvel, apenas observando qual seria a reação dele. A multidão gritava enquanto meu adversário apenas se aproximava, com um sorriso insano em seu rosto. Ergui o braço até a altura do rosto, montando uma base de luta. A multidão anteriormente inquieta, calou-se repentinamente. Visão periférica. Podia ver o suposto rei e mais alguns outros rostos expressando imensa curiosidade. Deveriam achar bizarro, deveria estar em uma época em que ainda não se conheciam artes marciais. Sim, eu treinava todos os dias de manhã, em um dojo próximo à minha casa. Era o único tipo de defesa que eu conhecia e, humildemente falando, era muito bom nisso. Mas eu não sabia onde estava, não sabia o que fazer e havia um homem com um olhar assassino segurando uma espada e vindo até mim. Além disso, eu ainda estava confuso e com medo. Também estava sendo tomado pelo cansaço. Mas sabia que iria ter que agir se houvesse necessidade. E haveria, certamente.
- Vai ficar parado, garoto? – Ele disse, sua voz estava rouca, provavelmente por sede. – Assim se torna mais fácil para eu acabar com você.
Uma investida rápida dele, segurando a espada em uma posição horizontal. Fácil de escapar. Apenas uma jogada de corpo para o lado e o inimigo passou direto por mim. Completava o movimento com um giro suave e as costas estariam desprotegidas. Ele não possuía base. A mão direita se ergueu levemente, aberta. E me deparei com o movimento perfeito. Um pouco de impulso. O movimento perfeito. Combinação de velocidade e força, um ataque certeiro à 2ª costela, atípica. Um estalo seguido de um gemido de dor, mas ele permaneceu de pé. Novamente ergueu a lâmina e tentou outro ataque, dessa vez vindo de cima. Lento demais, guarda aberta. Punho esquerdo cerrado, um soco potente fazendo pressão ao diafragma e ele ficou sem ar em questão de segundos. Apesar do pouco espaço, um movimento dianteiro, utilizando o pé direito para acertar um chute forte na rótula direita. Sem ar e com uma perna inútil, ele derrubou a espada e caiu desajeitadamente no chão, tentando se apoiar. Um golpe com o joelho quebrou-lhe o nariz, espalhando uma enorme quantidade de sangue. O homem agonizava no chão, mal podendo se mexer, mal podendo respirar. Afastei-me e olhei para o homem ao trono, que fez um aceno com a cabeça, indicando que deveria finalizá-lo. Também fiz um aceno, mas negando a sua ordem e pus-me a me aproximar de um dos portões.
- Se você não mata-lo, você morre. Creio que isso será uma grande desvantagem para você. Ele venceria devido à sua desvantagem, mas nas condições em que se encontra, provavelmente não durará muito tempo aqui. Não se depender das pessoas do reino. Então, ou um morre, ou os dois morrem.
O encarei com frieza. Nunca havia feito isso antes e não me sentia bem em fazê-lo agora. Olhei para o homem no chão e me aproximei novamente dele. Não havia escolha. Ou havia? Já teria passado por situações complicadas, poderia passar por isso.
- Se não mata-lo em dez segundos, me assegurarei que meus arqueiros o façam. E isso consequentemente o acertará. – Olhei a minha volta e notei o incrível número de homens carregando arcos e flechas. Todos preparados, apontados para nós. – 10, 9, 8...
Fechei os olhos. Nada daquilo era real. Eu sofri um acidente, era apenas um sonho. Sonho lúcido.
-7, 6...
Um rápido movimento de cima pra baixo com o pé, contra a cabeça daquele homem. Um estalo. Uma última respiração. Uma multidão enlouquecida pela demonstração de homem primitivo. Eu ainda não sabia onde estava.
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Última edição por Dave em Ter 24 Abr 2012, 18:58, editado 1 vez(es)