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Capitulo 1

Quinta-feira, 3 de setembro de 1970

Irmão
Tempos difíceis. E perigosos. Tempos de AI-5. Lara não sabia o que a sigla significava, mais a temia pelo que não se falava sobre ela. O silêncio das pessoas dizia tudo o que precisava ser dito. O AI-5 era uma forma que o governo militar havia encontrado para perseguir as pessoas consideradas inimigas do país. E nesta lista negra entrava qualquer um: professores, sindicalistas, estudantes, escritores, cantores, enfim, todo mundo que não concordasse com as decisões do governo militar.

Lara foi a pé para a escola, como sempre fazia. Desta vez, no entanto, o medo a acompanhava como uma sombra invisível. Havia uma sensação gelada, que ganhava força com a ameaça trazida pelo desconhecido, pelo que podia acontecer. Não temia por ela e sim por Luke, o irmão seis anos mais velhos. Não sabia se ele estava na lista de perseguição iniciada pelo AI-5.

Era um dia bonito. Lara saiu da Rua Pedro Américo e virou à direita para pegar a Avenida Ana Costa e passar em frente à estação de trem Sorocabana. Naquele momento, nenhum trem de passageiros ou de carga atravessava a venida, para a alegria dos motoristas mais apressados. Quando o trem passavam, todo o trânsito naquela área ficava parado. Lara gostava do som estridente e barulhento do sinalizador que soava antes de a cancela baixar e interditar a avenida, para que os vagões pudessem seguir em paz pelos trilhos. Santos era mesmo uma cidade deliciosa para se viver.

Naquela manhã, a garota não prestou atenção em nada, nem no bonde 42 que parava para pegar passageiros no ponto logo adiante. Em breve, Santos perderia todos os seus bondes para dar lugar aos ônibus que já circulavam em números cada vez maior. Sinal dos novos tempos, acreditavam alguns. é a modernidade, reforçavam outros. Lara, com seus 14 anos, gostava de bondes, mas não podia deixar de admirar as novidades em um mundo que parecia mais e mais veloz. No ano anterior, um americano, Neil Armstrong, havia pisado na Lua pela primeira vez. A avó de Lara não cansava de repetir que as imagens que a TV tinha exibido para mostrar o astronauta caminhando sobre a superficial lunar não passava de mentira. "Tudo truque!", retrucava ela, com raiva dos Estados Unidos. Não era esse o país que havia incentivado o golpe militar no Brasil? Como Luke explicaria uma vez, em voz baixa e apenas à irmã Lara e à avó, os agentes da CIA tinham ensinado métodos de tortura aos policiais e militares brasileiros, os mesmos métodos hoje aplicados sem piedade aos prisioneiros do regime.

Lara pensou em Caetano Veloso e Gilberto Gil. Luke contara que os dois haviam sido presos, um ano antes, numa boate do Rio de Janeiro, quando faziam espetáculo. Após dois meses na prisão, tinham partido para o exílio, na Inglaterra.  E se isso também acontecesse ao Luke? Lara tinha medo de que ela também acabasse preso, que fosse torturado e tivesse que ir embora do país. O que seria dela e da avó? As duas já morriam de saudades desde que ele trocara Santos e fora morar em São Paulo para estudar filosofia na USP. Já imaginou se o rapaz fosse obrigado a viver no exterior?

A garota respirou fundo e apertou os cadernos que carregava contra o peito. Espremido entre duas páginas, estava o dinheiro que entregaria ao irmão. Era tudo o que a avó conseguira arrumar. Luke não dera detalhes sobre o que estava acontecendo com ele. Ligara na véspera, pedindo para a irmã levar o dinheiro e encontrá-lo na biblioteca da escola onde ela estudava. O rapaz estava em perigo. Há tempos, Lara desconfiava de que o irmão estava fazendo mais do que participar de passeatas contra o governo, o que, aliás, agora era proibido. A avó queria levar pessoalmente o dinheiro, mas ele argumentara que a irmã não despertaria nenhuma suspeita. Afinal, ela estava apenas indo para a escola, dentro de sua rotina de sempre.

Lara continuou seguindo pela Avenida Ana Costa. Algumas casas ainda ostentavam na fachada, com orgulho, a bandeira nacional. O Brasil conquistava havia pouco o tricampeonato na Copa do Mundo, no México. O Colégio Santa Maria ficava numa das travessas da avenida, a poucas quadras da praia. Ocupava um quarteirão inteiro, com seus muros baixos de pedra branca. O prédio principal, em estudo neoclássico, fora erguido no final do século 19 e lembrava o "L" gigante, deitado para a direita. Na base da letra, ficavam a secretaria, a diretoria, a classe do pré, outras salas menores e o início da escadaria que levava para as sala de aula do primário e ginásio, no primeiro andar, e do clássico, do científico e do técnico em contabilidade, no segundo andar. Já no lado direito do prédio (a haste do "L"), no térreo, se espalhava a ampla biblioteca, aberta às terças e quintas ao público em geral. Acima dela, no primeiro andar, mais sala de aula e o laboratório. No segundo andar, mais salas de aula e o laboratório. No segundo andar, ainda desocupado, estava prevista a construção de um anfiteatro em breve.

Pintado de branco num reforço à sua aparência solene e tradicional, o prédio principal se destacava na paisagem do Gonzaga, um bairro de poucos edifícios e muitas casas residenciais. Em frente à Nossa Senhora, santa que batizava o colégio, e na lateral direita, a quadra para a prática de esportes. Ao fundo, mal se enxergava a minuscula casa do zelador. Já à esquerda do prédio principal, mais próximo ao muro, formava-se um tipo de corredor com a horta das crianças e, mais para dentro, a área de brincadeiras com balanços, escorregadores e gangorras, que continuava com o pátio atrás do prédio principal. Além dessa estrutura, o colégio contava com jardins bem cuidados, em vários pontos do terreno, em especial, na área livre entre a capela e o prédio principal e em frente `a biblioteca, diante do imponente portão de entrada e saída.

Ao dobrar a esquina da rua do colégio, Lara apertou o passo, com o coração batendo mais forte. Alcançou o portão da escola, se esqueceu de cumprimentar Gilmar (o zelador que também trabalhava como porteiro), acenou para duas amigas que fofocavam aos cochichos, na porta do prédio principal, à esquerda, lançou um olhar distraído para a capela, à direita, e atravessou a alameda central do jardim, que terminava na biblioteca. Ao entrar no local, esbarrou sem querer numa jovem loira de minissaia, muito bonita, de cabelos longos e franja que encobria os olhos muito maquiados.

- Desculpe! - Disse Lara, mas a jovem, apressada, saiu sem lhe dar atenção.

Atrás do balcão de atendimento, Conceição, a bibliotecária quarentona e simpática, se mostrou profundamente irritada ao ver a aluna que se aproximava apenas para lhe dar bom-dia.

- Faltam cinco minutos para a aula começar - disse a mulher, num tom de censura.
- Eu só vim pegar um livro... - tentou Lara, surpresa com aquela postura um tanto rude de uma pessoa sempre tão doce.
- Venha mais tarde.
- Mas...
- Eu disse para você vir mais tarde!

A autoridade sempre falaria mais alto. No entanto, naquele momento em que só pensava no irmão, a garota se fez de surda, acelerou o passo e escapou rumo aos corredores formados por estantes abarrotadas de livros, certa de que a bibliotecária iria atrás dela apenas para puxá-la de volta pelas orelhas. Conceição, porém, não se mexeu no seu posto junto ao balcão.

Estranho... a biblioteca estava vazia. Naquela hora da manhã era comum ouvir o burburinho dos alunos apressados que vinham devolver livros ou procurar outros para ajudá-los nos quilos de lição de casa que os professores costumavam passar.

Lara pegou o primeiro corredor, contornando-o a seguir para entrar no segundo. Depois, rapidamente, vistoriou o terceiro. Luke prometeu que entraria lá, no décimo corredor da esquerda para a direita... E se fosse no décimo corredor da direita para a esquerda? Isto mudava tudo! Eram 30 corredores no total, alinhados em paralelo, para a direita, logo após o balcão de atendimento e um grupo de mesinhas que os alunos utilizavam para estudar e fazer anotações dos livros.

A garota disparou para a outra ponta da biblioteca. Ouviu algumas vozes... pertenciam a adultos e não ás crianças e aos adolescentes de sempre. Sim, quinta-feira era dia de atendimento ao público em geral. Só que...

Desesperada, Lara alcançou o corredor certo, onde o irmão a esperava. A cena que encontrou foi a pior que poderia imaginar. Luke estava cercado por três homens truculentos e armados. Um deles se aproximou do rapaz, que não reagia, e o esmurrou com violência. Luke foi arremessado para trás, batendo contra os livros e as grossas prateleiras de madeira antes de cair de bruços no chão. Lara ia gritar, mas não conseguiu. Tinha parado de correr. Seu corpo tremia... de medo, de raiva, agitado por assistir àquela injustiça. O segundo homem se aproximou ainda mais do rapaz para enchê-lo de pontapés. Rosto, barriga, peito, braços, nada escapava aos chutes ferozes. O terceiro homem reforçou o ataque, enquanto i primeiro, muito satisfeito, apenas observava a situação.

Lara era uma adolescente magra e delicada. Mesmo assim, voou para cima dos dois homens que agredia, Luke. Tinha que segurá-los e tirar o irmão dali! Com força, agarrou um deles, pelo braço, puxando-o para trás.

- Não se meta nisso! - Brigou o sujeito, empurrando-a para longe.

Não, eles não iam levar o Luke! Lara retornou, com toda a revolta que conseguiu reunir, e se pendurou nas costas do sujeito para lhe cravar os dentes com força na orelha. O homem urrou, afastando-se automaticamente do rapaz que chutava sem piedade. Foi o segundo homem quem o ajudou a arrancar a menina de cima dele e jogá-la de volta ao chão. Lara caiu de qualquer jeito e, um pouco tonta, conseguiu se levantar, Ia retomar o ataque quando um som ensurdecedor invadiu o local.

Aturdida, a garota abaixou a cabeça para espiar o próprio corpo, O sangue encharcava a blusa branca do uniforme escolar. Um tiro atingira seu peito, na altura do coração, queimando e rasgando roupa, pele e carne. A dor terrível veio a seguir.

Lara ergueu o olhar para encontrar seu assassino. Ele ainda apontava a arma para a garota. Era o mesmo homem que esmurrara Luke e se afastara para acompanhar a surra, o mais jovem dos três. Não devia ter mais do que 20 anos. Os dois companheiros, preocupados, também o fitavam.

- Lara... - murmurou Luke, ainda estendido no chão e machucado demais para se mover. Ele a via somente naquele momento doloroso. Havia lágrimas em seus olhos, a culpa por ter colocado a irmã em perigo e, principalmente, o pânico pelo que aconteceria com ela.

O corpo da garota deslizou para baixo, para a frieza do piso da biblioteca. Os três homens não se importaram. Agiram rapidamente e, em segundos. Luke era carregado para longe. Sozinha, Lara sentiu o frio que antecipava o desconhecido. Não teve medo. Quando a escuridão surgiu ameaçadora, encontrou a garota corajosa de olhos abertos, pronta para encarar seu novo futuro.

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Capitulo 2
Segunda-Feira, 3 de setembro de 2007

Primeira vitima
Igor odiava aquela cidade. Santos era uma chatice! Também odiava segundas-feiras, principalmente quando a segunda-feira o obrigava a ir para a nova escola que odiava mais do que tudo na vida. Colégio Santa Maria: ultrapassado, arrogante e intransigente. Mas o padrasto insistira para que ele estudasse lá, porque era uma escola tradicional, de qualidade, porque ele estudara lá etc. e tal. E a mãe de Igor, que fazia todas as vontades do novo marido concordava com tudo, ressaltando ainda que uma escola mais exigente faria bem ao filho que repetira a 8ª. série no colégio em que estudara antes. Antes... Sim, uma palavra que definia bem os 15 anos de existência de Igor. Existiu um "antes", quando a vida valia a pena. A vida que tivera em Bauru, interior de São Paulo, o colégio superlegal e os colegas e amigos que deixara para trás, tudo acontecera antes. Antes que o pai adoecessem antes da morte dele, antes do segundo casamento da mãe, antes de levar bomba na 8ª. série, antes de ver os amigos irem, sem ele, para o ensino médio. Antes da mudança para Santos.

Igor odiava mesmo aquela cidade. Estava lá desde Janeiro, quando o padrasto, um médico santista que morava em Bauru, recebera um convite para integrar a equipe de oncologia do Hospital Guilherme Álvaro, em Santos. Fora sua oportunidade de retornar para casa. Na prática, aquele convite era mais um motivo para o adolescente de 15 anos odiar Santos. Sentia-se perdido, sem identidade e totalmente sozinho naquela cidade litorânea que, apesar de atraente, não conseguia conquista-lo.

Uma nova volta no quarteirão adiar mais um pouco sua entrada na aula. Apesar do olhar feroz de Gilmar, o velho zelador e também porteiro, Igor desviou o bicicleta do portão do colégio e pedalou para longe dali. Resistiu com força a vontade de escapar par a praia e passar a manhã inteira inteira lá, sentado na areia, acompanhando as ondas que chegavam e partiam, distraídas e desligadas do mundo. Fizera isto quase todos os dias no primeiro semestre letivo, o que lhe rendera faltas em todas as disciplinas e um castigo homérico quando a mãe descobriu tudo: ficar sem usar o computador por um mês. Um mês! Aquilo, com certeza, fora uma tortura terrível para um garoto que levava para todo o lado o laptop, que pertencera ao pai, escondido na inevitável mochila pendurada nas costas. Santos podia ser charmosa, mais tinha os mesmos problemas de cidade grande, ou seja, assaltos, roubos, ainda mais em um bairro comercial e movimentado como o Gonzaga.

O Colégio Santa Maria, voltado para alunos do maternal até o ensino médio, ocupava a quadra inteira com seu muro alto, pintado de um branco encardido pela poluição e cheio de grades no alto. Volta e meia alguém pichava o muro. O velho zelador, que morava numa casinha ridícula nos fundos da escola, demorava séculos para tirar a pichação e retocar a pintura. O padrasto de Igor torcia o nariz, dizendo que na épica em que as freiras administravam o colégio aquilo jamais ocorria. Bons tempos, lembrava ele. O Santa Maria agora era dirigido por uma pedagoga, Eunice, que não era religiosa. E até agora Igor só vira uma freira: Irmã Mariana, sua professora de língua portuguesa.

Igor achou que a nova volta na quadra foi rápida demais. Não teve jeito. Sob a vigilância cerrada do zelador - que, a pedido da mãe do garoto, "tomava conta" dele para evitar novas escapadas da aula -, entrou no colégio. Largou a bike no bicicletário, colado ao muro à esquerda, espiou a algazarra que os mais novos faziam no incrementado playground ao fundo, logo depois da horta, ajeitou a mochila nas costas, ignorou a entrada para a aula no prédio principal e, ao alcançar o jardim, atravessou a alameda central rumo à biblioteca. Tinha que devolver um livro.

Na porta da biblioteca, esbarrou no último aluno que saía, apressado, do local. A primeira aula já começara, mas ele não se importou. Resmungou um oi para a idosa Conceição, a bibliotecária simpática que sempre o recebia com um sorriso. Era a única. Todos os novos colegas só sabiam tirar sarro do seu sotaque do interior. Aliás, tiravam sarro de um garoto que os esnobava, sempre com um ar superior de amigos e zero e vontade nenhuma de fazer amizade. Imitavam o "r" carregado, zoavam da camiseta negra que ele usava para esconder o uniforme, as correntes que gostava de pendurar na calça jeans e os cabelos castanho-escuros e compridos demais, que ultrapassavam seus ombros de moleque magricela e desengonçado. Já a compreensiva Conceição o recebia sem qualquer preconceito. Ela parecia gostar do garoto que só pegava algum livro na biblioteca quando não conseguia achar o que procurava na internet e utilizar os infalíveis control C + Control V para preparar algum trabalho escolar.

Igor devolveu o livro retirado da mochila e, enquanto a bibliotecária dava baixa em sua ficha no computador, bocejou com preguiça. Pena que os micros que ficavam à disposição dos alunos, na bancada, estavam bloqueados para Orkut e MSN. De qualquer forma, podia ficar ali e acessar algum fórum de RPG sem que a Conceição percebesse...

- Chegou um livro novo do André Vianco - avisou a mulher, que conhecia os gostos de todos os alunos, principalmente daquele bauruense estranho no ninho. - E já verifiquei na internet: não há cópias piratas para download.

- Livro novo, é?
- Exato
- E por que você acha que eu pego download de livro? - perguntou o garoto, cínico. - Pirataria é rime!
- Ora, rapazinho, em nenhum momento eu achei que você fizesse isso - sorriu a velinha, girando a caneta que não tirava dos dedos nem para digitar do teclado.
- Agora vá buscar logo o livro. E não demore! você já perdeu a primeira aula, mas não vou deixá-lo perder a segunda.

Igor deu de ombros e caminhou sem pressa alguma em direção aos corredores formados por estantes abarrotadas de livros. Não havia mais ninguém circulando pela biblioteca. Apenas ele, os livros e a bibliotecária em sue posto atrás do balcão. Igor demorou uma eternidade no quarto corredor, reservado aos paradidáticos e outros nem tanto, como a prateleira de obras de terror e afins. Descobriu um livro de contos da escritora vampírica Giulia Moon e começou a folheá-lo. Depois, abriu um outro, também vampírico, da autora Martha Argel.

Já começara a ler o quinto conto daquela manhã quando o estômago roncou de fome. é, esquecera de tomar o café-da-manhã apenas par não ser obrigado a dividir a mesa com o padrasto, que entrava mais tarde no hospital às segundas-feiras e, por isso, fazia questão de passar o maior tempo possível com a esposa e o enteado naquele dia da semana. Mais um motivo para odiar a segunda-feira.

Conceição, pelo jeito, não se lembrara de chamar o aluno irresponsável para a segunda aula. Igor colocou o livro de contos debaixo do braço, resgatou a mochila que deixara no chão, onde se sentara para ler, e pegou o caminho de volta. De relance, viu que a bibliotecária, em sua cadeira atrás do balcão, cochilava com a cabeça tombada para a frente. Igor resolveu sair de fininho, apenas para evitar a bronca por perder metade da manhã de aulas. Aproveitaria o intervalo para comprar um pedaço de pizza na cantina, junto ao pátio nos fundos do colégio, e...

Próxima à bancada de computadores, uma garota da idade dele olhava fixamente para conceição. Parecia assustada. Igor, que há muito se interessava por garotas bonitas, parou para observá-la melhor. Puxa, aquela ali era mesmo linda! Cabelos longos e ondulados, castanho-claros, olhos azuis, pele branca até demais, corpo delicado, já com curvas de mulher adulta, seios pequenos que se destacavam suavemente sob a blusa do uniforme escolar, a saia de pregas na altura do joelho (bem que podia ser mais curta!) cobrindo pernas gostosas... Bom, aquele uniforme era do Santa Maria, mas também não era...

- Que foi? - perguntou Igor, vendo que a menina não se movia.
Lentamente, a garota girou os olhos azuis para ele.
- Você... você consegue me enxergar? - perguntou ela, espantada.
- Ué, não sou cego nem míope!

A resposta grosseira provocou uma careta na menina. Igor já pensava em consertar a situação quando, mais por curiosidade, também se virou para olhar a bibliotecária. Só então reparou que havia sangue na blusa de gola rulê da velinha. Com cuidado, aproximou-se do balcão. Um corte rasgara a garganta da Conceição de ponta a ponta.

- Quem fez isso sabia exatamente como fazer...- analisou ele, sem emoção. Há muito deixara de ser incomodar com cadáveres. Vira alguns no período que passara acompanhando o pai internado no hospital, meses de agonia em que a doença consumira dolorosamente o adulto até o momento final, quando morrera diante do filho.

Igor se voltou para a garota, mais ela simplesmente desaparecera. "Foi pedir ajuda", deduziu. Ele, então memorizou todos os detalhes da cena do crime. A pilha de livros sobre o balcão, o computador com todos os programas fechados, a caneta que a bibliotecária ainda mantinha entre os dedos da mão direita... Conceição parecia em paz.

Neste minuto, alguém atrás de Igor liberou um grito estridente. Era Victoria, uma menina da classe dele, que acabava de chegar para devolver um CD-ROM. Foi o suficiente para atrair mais gente e provocar o nível máximo de pânico na escola. Um assassinato acabara de ocorrer na biblioteca.

Victoria, cada vez mais histérica, caprichou nos decibéis do seu último berro:

- E foi o esquisito do Igor que matou a bibliotecária!!!!!!!!!










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Capitulo 3

Amantes
Adriana, a mãe de Igor, largou tudo na sua loja recém-inaugurada no Miramar Shopping e correu para a escola após receber um telefonema da diretora Eunice. Apesar de o colégio ser perto, preferiu ir de carro para chegar mais rápido. No caminho, pegou o celular e ligou para o marido. Gustavo ainda estava no carro dele, a caminho do hospital, e escutou, em silêncio, a explicação atropelada que a esposa tentou lhe passar. Assassinato, escola, bibliotecária, Igor envolvido em um crime!

- Fique calma - disse ele. - Vou pedir para um amigo me substituir no hospital e te encontro daqui a pouco na escola, tá?

Gustavo era mesmo um homem maravilhoso, alguém que a apoiava e tinha uma paciência imensa para lidar com o lacônico Igor. Fazia o impossível para conquistar a amizade do menino, que se fechara em si mesmo desde a morte do pai. Adriana se desesperava só de imaginar que talvez nunca mais conseguisse restabelecer contato com o filho. Já tentara de tudo. Nada, porém, surtira algum efeito.

E ainda havia aquela fascinação pela morte... Igor – que no último ano desistira das aulas de inglês, espanhol, natação, guitarra, futsal e qualquer outra coisa que o arrancasse da frente do laptop – cismara em fazer, nas férias de julho, um curso de taxidermia no museu de Pesca. Para Adriana, taxidermia nada mais era do que uma forma de empalhar animais mortos.

- Não é empalhar, mãe! – corrigira Igor, indignado – É dar ao animal a mesma aparência de quando ele era vivo, sem deformar nada!

Desde então, o menino passara a pegar qualquer animal morto que encontrasse na rua. Quase matara a empregada do coração ao deixar um rato morto na geladeira, dentro de um saco de plástico, exatamente ao lado do pacote de peito de frango congelado que a coitada iria preparar para o almoço. Gustavo fora o único que partira em defesa do garoto.

- Ele gosta de ciências – explicara logo depois que Igor, amuado com a bronca materna e o olhar fuzilante da empregada, parira em silencio para o quarto. – Na idade dele, eu criava tarântulas no laboratório do colégio.




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Atenciosamente:
SamuelCosta
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