Carandiru
O massacre do Carandiru, onde 111 presos foram executados em 1992, é um fantasma a assombrar o Brasil, até hoje tingido pelo sangue de uma chacina que ganhou mais repercussão internacional do que qualquer outro fato ocorrido no país nos últimos anos. Somente a verdade pode exorcizar esse fantasma, e esse foi caminho iluminado por uma série de reportagens publicada por Zero Hora entre os 18 e 22 de janeiro deste ano.
Infelizmente, toda a extensão da verdade sobre o Carandiru continua sendo de exclusivo conhecimento dos mais de 1 milhão de leitores de ZH.
Para reconstituir o que de fato se passou na noite de 2 de outubro de 1992 na maior penitenciária da América do Sul, o repórter Ricardo Stefanelli debruçou-se sobre as 8.230 páginas do processo, guardado em 38 volumes no cartório da Segunda Vara Criminal de São Paulo, no bairro de Vila Mariana. Ignorado por outros jornais, o processo foi trazido a público pela primeira vez graças à perspicácia de Stefanelli e a uma partida de futebol na qual o repórter rompeu os ligamentos do pé esquerdo.
Imobilizado por uma bota de gesso e inquieto por voltar à ativa, Stefanelli lembrou-se da entrevista de uma promotora paulista que antecipava o fim da coleta de depoimentos sobre o massacre e percebeu que ali poderia estar uma reportagem que prescindisse de caminhadas.
Em novembro, Stefanelli bateu à porta do cartório paulista e, para surpresa dos promotores diante do interesse do repórter gaúcho que convenceu os funcionários a abrirem a repartição mais cedo durante oito dias, atrelou-se a uma mesa cercado por pilhas de documentos.
Os principais trechos eram transcritos para um laptop e transmitidos online para os computadores de ZH. As mais de 800 pessoas que prestaram pelo menos dois depoimentos cada uma desenhavam, juntamente com laudos de perícia, fotos e filmes, um relato com impressionante profundidade e fartura de detalhes.
No início deste ano Stefanelli regressou a São Paulo para recolher diretamente novos testemunhos de personagens-chave do massacre. Somente o comandante da operação no Carandiru, o coronel e hoje deputado estadual Ubiratan Guimarães, foi ouvido em quatro diferentes ocasiões.
Acompanhado pelo editor de Fotografia de ZH, Ricardo Chaves, que mergulhou em arquivos de jornais e revistas paulistas para identificar envolvidos no massacre e localizá-los, o repórter também visitou presídios e fez mais de 40 entrevistas, a maioria com presos e policiais que se encontraram no Carandiru naquele dia. O retrato que emerge da narrativa de Stefanelli, que cruzou os depoimentos para recompor até os diálogos travados nas celas e nos corredores, é irretorquível e inquietante.
Primeiras verdades
maior carnificina brasileira do século já pode ser contada. O processo sobre as 111 mortes de detentos no Presídio do Carandiru, ocorridas em outubro de 1992, acaba de ser montado. Nenhum depoimento, laudo ou outra prova qualquer será acrescentado a ele antes do júri que determinará a sorte dos réus.
O calhamaço de 38 volumes mostra em detalhes como e por que aconteceu a matança promovida pela Polícia Militar de São Paulo. Os "autos do processo", segundo a linguagem jurídica, revelam que a operação desobedeceu à estratégia criada para a ação policial naquela penitenciária, desenrolou-se sem comando e terminou sob uma farsa. O julgamento pode ocorrer ainda em 1998. ZH antecipa de hoje a quinta-feira os capítulos principais do maior processo da história jurídica brasileira. Nenhum outro teve, ao mesmo tempo, tantos réus e tantas vítimas.
Só agora é possível saber exatamente o que ocorreu. Até hoje, informações parciais permitiram elaborar um roteiro aproximado da chacina número 1 da história mundial dos presídios. Havia versões exageradas pelo desespero. Ou diminuídas de propósito. Na Justiça, onde os laudos periciais foram confrontados com depoimentos prestados ao longo de cinco anos, a verdade emerge nítida.
Os relatos - de autoridades, sobreviventes, policiais ou carcereiros - se complementam. No mundo, o julgamento do Caso Carandiru só perderá em magnitude para crimes de guerra praticados pelos nazistas. "Será o nosso Tribunal de Nürenberg", compara Norberto Jóia, um dos sete promotores responsáveis pela acusação.
Falta pouco para o caso acabar. O juiz Nilson Xavier de Souza, do 2º Tribunal do Júri de São Paulo, deve anunciar em fevereiro quando os acusados estarão no banco dos réus. ZH é o primeiro jornal a ter acesso ao processo concluído. Lendo-o é possível esfarelar falsas montagens e estabelecer conclusões fundamentais:
1) Os oficiais que comandaram a invasão desprezaram uma estratégia planejada oito anos antes especialmente para eventuais operações dentro do Carandiru.
2) O comandante principal da ação militar não esteve interessado em negociar com os rebelados, como deu a entender.
3) Para ingressar no prédio, a tropa desorientada valeu-se de um detento tomado, às pressas, na Tenda de Umbanda do presídio. Foi ele o guia da ação bélica.
4) A pontaria mostra a intenção de matar. Um cadáver, por exemplo, tinha 16 perfurações de armas de fogo pelo corpo. No total, 126 balas acertaram a cabeça dos mortos, 31 atingiram o pescoço e 17 feriram nádegas. Outros 223 tiros atingiram o tronco dos presidiários.
5) Experientes oficiais comandaram uma faxina ilegal no prédio e ordenaram a remoção dos corpos, prejudicando a perícia.
6) A tese do confronto e da legítima defesa, utilizada pela cúpula da PM, não encontra respaldo nos autos. O processo não comprova que os 13 revólveres apresentados pelo comando da operação estavam em poder dos presidiários.
7) Não havia ordens superiores para matar - e muito menos para não matar.
Não apenas na cadeia a falsidade teve vez. A encenação na divulgação do massacre desonrou um Brasil que, dois dias antes, expulsara do poder um presidente da República que mentira ao país. Às 22h de 2 de outubro, comprovam os depoimentos de cabos e soldados, já havia pelo menos 88 cadáveres no presídio e oito no hospital. Só às 16h45min do dia seguinte o governo paulista divulgou o balanço da selvageria. O horário era eleitoralmente propício: naquela tarde, às 17h, fechavam-se as urnas das eleições municipais.
A leitura do processo concluído mostra, por fim, que o confronto no presídio se deu entre forças desiguais. De um lado estava a tropa oficial, com fuzis e metralhadoras aptas a perfurar um blindado para manter a ordem. No outro, detentos armados de estiletes, paus e ferros. Entre os atiradores, alguns protegidos por escudos e coletes à prova de balas, era possível avistar uniformes de ombreiras estreladas. Entre as vítimas, a maioria nua, havia 11 Josés, 10 Joãos, 17 Santos e 24 Silva. Um retrato do Brasil. É o que o Brasil vai descobrir a partir de agora.
Briga por varal abre rebelião
O soldado Ademir Lécio Leal, sentinela do posto 9 da Casa de Detenção, acompanha do alto da muralha o jogo de futebol entre os presidiários.
- Passa, larga essa bola, meu - xinga o centroavante do time de camisetas mais claras.
- Eu não vi você, não - explica, com calma, o ponteiro de sotaque nordestino.
Os detentos de camisas escuras, a turma da alimentação, vencem por 3 a 2 o time de camisetas lisas, a maior parte brancas, formado pelos encarregados da faxina. O fuzil de Leal está pendurado despretensiosamente no ombro, e o placar apertado empolga. A visita do meio-campista Neto, do Corinthians, há 15 dias, motivou os atletas do presídio, boa parte paulistas, a maioria corintianos. O juiz, um destemido nissei manco da perna esquerda, não tem dificuldade em controlar a partida. À falta de apito, comanda o jogo aos assobios. No campo de chão batido e goleiras improvisadas, assaltantes, homicidas e estelionatários não costumam descumprir as leis do futebol.
A sexta-feira, 2 de outubro, está abafada. Nesses dias, os paredões altos represam o ar na Casa de Detenção Professor Flamínio Fávero, na Avenida Cruzeiro do Sul, bairro de Carandiru, zona norte de São Paulo. O calor exagerado estimula que o almoço do dia - arroz, feijão e peixe, o das sextas-feiras -, servido a partir das 11h, seja deixado de lado por boa parte dos presidiários. Os que jogam comerão depois, na marmita aquecida pelas espiriteiras das celas.
A calmaria do vento e o céu balofo de nuvens cinzentas avisam que o chuvisqueiro das primeiras horas da manhã deve voltar em seguida, talvez com intensidade. O pernambucano Antônio Luiz do Nascimento, nascido em Vicença, conhecido como Barba, condenado a 21 anos e quatro meses por latrocínio, líder de um grupo de presidiários com ramificações nas quadrilhas da zona oeste de cidade, aproveita os momentos de estio para pendurar a roupa no varal. O também pernambucano Luiz Tavares de Azevedo, natural de Equipapa, condenado a 11 anos e cinco meses por assalto a banco, cabeça de um bando originário da zona leste paulista, provoca:
- Eu vou estender minha roupa aí também - diz Azevedo, conhecido como Coelho.
- Vá procurar outro varal ou espere eu recolher a minha roupa - rebate Barba, prendendo a cueca puída na corda esticada ao sol.
- Vou usar esse mesmo - desafia Coelho, antes de ser atingido por um soco. No contra-ataque, Coelho arranca o pau que escora a corda do varal e o quebra na cabeça do desafeto. Barba, perdendo sangue, é socorrido por agentes que o conduzem desmaiado para o Pavilhão 4, o da Enfermaria. Coelho volta para a cela, onde seus adversários preparam o troco.
A algazarra promovida pelo quarto gol do time de camisas escuras se mistura à balbúrdia ouvida no Pavilhão 9. Um amigo de Barba, contrariado com a agressão que considera covarde a seu companheiro, desafia um comparsa de Coelho à briga. Um guarda penitenciário tenta apartar a rixa, mas é repreendido pelos demais apenados que assistem à luta:
- Isso é briga de ladrão - rosna um detento, da turma de Barba, puxando pela camisa o funcionário do presídio e ameaçando-o. - Não te mete.
A presença do carcereiro no meio da briga assusta o sentinela Leal, que corre pela muralha, põe o fuzil em posição de mira e ordena.
- Larguem. Larguem, senão eu atiro!
A confusão no pátio se espraia. A briga pelo varal acendeu a fagulha no barril de pólvora. Os 22 jogadores e cerca de 200 outros apenados que assistem à partida correm para dentro do pavilhão em ebulição. Um outro agente penitenciário, atento à confusão, grita para o soldado no alto da muralha.
- Acione o alarme - implora o carcereiro em apuros. - Peça socorro.
Pelo telefone direto instalado na guarita, o PM Ademir Lécio Leal comunica-se com o Batalhão de Guarda:
- Tem rebelião no 9.
A 200 metros dali, o diretor do presídio, José Ismael Pedrosa, está envolvido numa operação de rotina: encontrar vaga para 68 detentos que acabam de chegar à cidade do crime cravada no coração de São Paulo. São, a partir de agora, 7.257 homens divididos em sete pavilhões projetados para abrigar apenas 3,3 mil homens. Homicidas de alta periculosidade, traficantes, assaltantes, estupradores e estelionatários desembarcam todos os dias nos gigantescos pavilhões do maior presídio da América Latina. Mesmo habituados à violência, os novos hóspedes fora-da-lei se mostram assustados com o estigma da Casa de Detenção - A Penitenciária da Morte.
As muralhas de sete metros de altura, sob o manto do silêncio, alojam a corrupção, o tráfico de drogas, o comércio ilegal de armas e de comidas. Um local onde uma bagana de maconha vale dois maços de cigarros, um papelote de cocaína vale 12 maços e um kit com sabonete, pasta de dente e aparelho de barba custa um pacote com filtro. O prédio 9, de escassa iluminação natural, em péssimo estado de conservação, com freqüentes problemas de encanamento e eletricidade e o último a receber os alimentos tem um apelido sugestivo: "Favelão".
O diretor sabe que os novos egressos levarão apenas duas ou três semanas até se integrarem a uma das três máfias - apelidadas de famílias - que comandam o presídio: a das drogas, a dos medicamentos ou a da comida. Para sobreviver ali dentro é preciso obedecer ao código de honra imposto pelas quadrilhas organizadas.
- Doutor Pedrosa - grita esbaforido o agente Aparecido Flora da Silva. - Os detentos não suportaram nossos colegas.
Não suportaram significa renderam na linguagem penitenciária, presidida por uma lógica às avessas. São 14h. Pedrosa, experiente e zeloso, sente as primeiras gotas de suor na testa. Teme pela sorte dos subordinados, ainda sem saber que os carcereiros, cercados pelos dois lados, bateram em retirada. O Pavilhão 9 está sob total controle dos presidiários.
No gabinete do tenente-coronel Lelces André Pires de Moraes, comandante do 1º Batalhão de Polícia de Guarda, encarregado da segurança externa do presídio, entra resfolegante o major Abelardo Alves de Souza, subcomandante do batalhão.
Alguma coisa está ocorrendo no Pavilhão 9 - avisa.
Fonte: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos/fd050398b1.htm
Através de relatos o crime (ou não?) começava a ser resolvido...
O massacre do Carandiru, onde 111 presos foram executados em 1992, é um fantasma a assombrar o Brasil, até hoje tingido pelo sangue de uma chacina que ganhou mais repercussão internacional do que qualquer outro fato ocorrido no país nos últimos anos. Somente a verdade pode exorcizar esse fantasma, e esse foi caminho iluminado por uma série de reportagens publicada por Zero Hora entre os 18 e 22 de janeiro deste ano.
Infelizmente, toda a extensão da verdade sobre o Carandiru continua sendo de exclusivo conhecimento dos mais de 1 milhão de leitores de ZH.
Para reconstituir o que de fato se passou na noite de 2 de outubro de 1992 na maior penitenciária da América do Sul, o repórter Ricardo Stefanelli debruçou-se sobre as 8.230 páginas do processo, guardado em 38 volumes no cartório da Segunda Vara Criminal de São Paulo, no bairro de Vila Mariana. Ignorado por outros jornais, o processo foi trazido a público pela primeira vez graças à perspicácia de Stefanelli e a uma partida de futebol na qual o repórter rompeu os ligamentos do pé esquerdo.
Imobilizado por uma bota de gesso e inquieto por voltar à ativa, Stefanelli lembrou-se da entrevista de uma promotora paulista que antecipava o fim da coleta de depoimentos sobre o massacre e percebeu que ali poderia estar uma reportagem que prescindisse de caminhadas.
Em novembro, Stefanelli bateu à porta do cartório paulista e, para surpresa dos promotores diante do interesse do repórter gaúcho que convenceu os funcionários a abrirem a repartição mais cedo durante oito dias, atrelou-se a uma mesa cercado por pilhas de documentos.
Os principais trechos eram transcritos para um laptop e transmitidos online para os computadores de ZH. As mais de 800 pessoas que prestaram pelo menos dois depoimentos cada uma desenhavam, juntamente com laudos de perícia, fotos e filmes, um relato com impressionante profundidade e fartura de detalhes.
No início deste ano Stefanelli regressou a São Paulo para recolher diretamente novos testemunhos de personagens-chave do massacre. Somente o comandante da operação no Carandiru, o coronel e hoje deputado estadual Ubiratan Guimarães, foi ouvido em quatro diferentes ocasiões.
Acompanhado pelo editor de Fotografia de ZH, Ricardo Chaves, que mergulhou em arquivos de jornais e revistas paulistas para identificar envolvidos no massacre e localizá-los, o repórter também visitou presídios e fez mais de 40 entrevistas, a maioria com presos e policiais que se encontraram no Carandiru naquele dia. O retrato que emerge da narrativa de Stefanelli, que cruzou os depoimentos para recompor até os diálogos travados nas celas e nos corredores, é irretorquível e inquietante.
Primeiras verdades
maior carnificina brasileira do século já pode ser contada. O processo sobre as 111 mortes de detentos no Presídio do Carandiru, ocorridas em outubro de 1992, acaba de ser montado. Nenhum depoimento, laudo ou outra prova qualquer será acrescentado a ele antes do júri que determinará a sorte dos réus.
O calhamaço de 38 volumes mostra em detalhes como e por que aconteceu a matança promovida pela Polícia Militar de São Paulo. Os "autos do processo", segundo a linguagem jurídica, revelam que a operação desobedeceu à estratégia criada para a ação policial naquela penitenciária, desenrolou-se sem comando e terminou sob uma farsa. O julgamento pode ocorrer ainda em 1998. ZH antecipa de hoje a quinta-feira os capítulos principais do maior processo da história jurídica brasileira. Nenhum outro teve, ao mesmo tempo, tantos réus e tantas vítimas.
Só agora é possível saber exatamente o que ocorreu. Até hoje, informações parciais permitiram elaborar um roteiro aproximado da chacina número 1 da história mundial dos presídios. Havia versões exageradas pelo desespero. Ou diminuídas de propósito. Na Justiça, onde os laudos periciais foram confrontados com depoimentos prestados ao longo de cinco anos, a verdade emerge nítida.
Os relatos - de autoridades, sobreviventes, policiais ou carcereiros - se complementam. No mundo, o julgamento do Caso Carandiru só perderá em magnitude para crimes de guerra praticados pelos nazistas. "Será o nosso Tribunal de Nürenberg", compara Norberto Jóia, um dos sete promotores responsáveis pela acusação.
Falta pouco para o caso acabar. O juiz Nilson Xavier de Souza, do 2º Tribunal do Júri de São Paulo, deve anunciar em fevereiro quando os acusados estarão no banco dos réus. ZH é o primeiro jornal a ter acesso ao processo concluído. Lendo-o é possível esfarelar falsas montagens e estabelecer conclusões fundamentais:
1) Os oficiais que comandaram a invasão desprezaram uma estratégia planejada oito anos antes especialmente para eventuais operações dentro do Carandiru.
2) O comandante principal da ação militar não esteve interessado em negociar com os rebelados, como deu a entender.
3) Para ingressar no prédio, a tropa desorientada valeu-se de um detento tomado, às pressas, na Tenda de Umbanda do presídio. Foi ele o guia da ação bélica.
4) A pontaria mostra a intenção de matar. Um cadáver, por exemplo, tinha 16 perfurações de armas de fogo pelo corpo. No total, 126 balas acertaram a cabeça dos mortos, 31 atingiram o pescoço e 17 feriram nádegas. Outros 223 tiros atingiram o tronco dos presidiários.
5) Experientes oficiais comandaram uma faxina ilegal no prédio e ordenaram a remoção dos corpos, prejudicando a perícia.
6) A tese do confronto e da legítima defesa, utilizada pela cúpula da PM, não encontra respaldo nos autos. O processo não comprova que os 13 revólveres apresentados pelo comando da operação estavam em poder dos presidiários.
7) Não havia ordens superiores para matar - e muito menos para não matar.
Não apenas na cadeia a falsidade teve vez. A encenação na divulgação do massacre desonrou um Brasil que, dois dias antes, expulsara do poder um presidente da República que mentira ao país. Às 22h de 2 de outubro, comprovam os depoimentos de cabos e soldados, já havia pelo menos 88 cadáveres no presídio e oito no hospital. Só às 16h45min do dia seguinte o governo paulista divulgou o balanço da selvageria. O horário era eleitoralmente propício: naquela tarde, às 17h, fechavam-se as urnas das eleições municipais.
A leitura do processo concluído mostra, por fim, que o confronto no presídio se deu entre forças desiguais. De um lado estava a tropa oficial, com fuzis e metralhadoras aptas a perfurar um blindado para manter a ordem. No outro, detentos armados de estiletes, paus e ferros. Entre os atiradores, alguns protegidos por escudos e coletes à prova de balas, era possível avistar uniformes de ombreiras estreladas. Entre as vítimas, a maioria nua, havia 11 Josés, 10 Joãos, 17 Santos e 24 Silva. Um retrato do Brasil. É o que o Brasil vai descobrir a partir de agora.
Briga por varal abre rebelião
O soldado Ademir Lécio Leal, sentinela do posto 9 da Casa de Detenção, acompanha do alto da muralha o jogo de futebol entre os presidiários.
- Passa, larga essa bola, meu - xinga o centroavante do time de camisetas mais claras.
- Eu não vi você, não - explica, com calma, o ponteiro de sotaque nordestino.
Os detentos de camisas escuras, a turma da alimentação, vencem por 3 a 2 o time de camisetas lisas, a maior parte brancas, formado pelos encarregados da faxina. O fuzil de Leal está pendurado despretensiosamente no ombro, e o placar apertado empolga. A visita do meio-campista Neto, do Corinthians, há 15 dias, motivou os atletas do presídio, boa parte paulistas, a maioria corintianos. O juiz, um destemido nissei manco da perna esquerda, não tem dificuldade em controlar a partida. À falta de apito, comanda o jogo aos assobios. No campo de chão batido e goleiras improvisadas, assaltantes, homicidas e estelionatários não costumam descumprir as leis do futebol.
A sexta-feira, 2 de outubro, está abafada. Nesses dias, os paredões altos represam o ar na Casa de Detenção Professor Flamínio Fávero, na Avenida Cruzeiro do Sul, bairro de Carandiru, zona norte de São Paulo. O calor exagerado estimula que o almoço do dia - arroz, feijão e peixe, o das sextas-feiras -, servido a partir das 11h, seja deixado de lado por boa parte dos presidiários. Os que jogam comerão depois, na marmita aquecida pelas espiriteiras das celas.
A calmaria do vento e o céu balofo de nuvens cinzentas avisam que o chuvisqueiro das primeiras horas da manhã deve voltar em seguida, talvez com intensidade. O pernambucano Antônio Luiz do Nascimento, nascido em Vicença, conhecido como Barba, condenado a 21 anos e quatro meses por latrocínio, líder de um grupo de presidiários com ramificações nas quadrilhas da zona oeste de cidade, aproveita os momentos de estio para pendurar a roupa no varal. O também pernambucano Luiz Tavares de Azevedo, natural de Equipapa, condenado a 11 anos e cinco meses por assalto a banco, cabeça de um bando originário da zona leste paulista, provoca:
- Eu vou estender minha roupa aí também - diz Azevedo, conhecido como Coelho.
- Vá procurar outro varal ou espere eu recolher a minha roupa - rebate Barba, prendendo a cueca puída na corda esticada ao sol.
- Vou usar esse mesmo - desafia Coelho, antes de ser atingido por um soco. No contra-ataque, Coelho arranca o pau que escora a corda do varal e o quebra na cabeça do desafeto. Barba, perdendo sangue, é socorrido por agentes que o conduzem desmaiado para o Pavilhão 4, o da Enfermaria. Coelho volta para a cela, onde seus adversários preparam o troco.
A algazarra promovida pelo quarto gol do time de camisas escuras se mistura à balbúrdia ouvida no Pavilhão 9. Um amigo de Barba, contrariado com a agressão que considera covarde a seu companheiro, desafia um comparsa de Coelho à briga. Um guarda penitenciário tenta apartar a rixa, mas é repreendido pelos demais apenados que assistem à luta:
- Isso é briga de ladrão - rosna um detento, da turma de Barba, puxando pela camisa o funcionário do presídio e ameaçando-o. - Não te mete.
A presença do carcereiro no meio da briga assusta o sentinela Leal, que corre pela muralha, põe o fuzil em posição de mira e ordena.
- Larguem. Larguem, senão eu atiro!
A confusão no pátio se espraia. A briga pelo varal acendeu a fagulha no barril de pólvora. Os 22 jogadores e cerca de 200 outros apenados que assistem à partida correm para dentro do pavilhão em ebulição. Um outro agente penitenciário, atento à confusão, grita para o soldado no alto da muralha.
- Acione o alarme - implora o carcereiro em apuros. - Peça socorro.
Pelo telefone direto instalado na guarita, o PM Ademir Lécio Leal comunica-se com o Batalhão de Guarda:
- Tem rebelião no 9.
A 200 metros dali, o diretor do presídio, José Ismael Pedrosa, está envolvido numa operação de rotina: encontrar vaga para 68 detentos que acabam de chegar à cidade do crime cravada no coração de São Paulo. São, a partir de agora, 7.257 homens divididos em sete pavilhões projetados para abrigar apenas 3,3 mil homens. Homicidas de alta periculosidade, traficantes, assaltantes, estupradores e estelionatários desembarcam todos os dias nos gigantescos pavilhões do maior presídio da América Latina. Mesmo habituados à violência, os novos hóspedes fora-da-lei se mostram assustados com o estigma da Casa de Detenção - A Penitenciária da Morte.
As muralhas de sete metros de altura, sob o manto do silêncio, alojam a corrupção, o tráfico de drogas, o comércio ilegal de armas e de comidas. Um local onde uma bagana de maconha vale dois maços de cigarros, um papelote de cocaína vale 12 maços e um kit com sabonete, pasta de dente e aparelho de barba custa um pacote com filtro. O prédio 9, de escassa iluminação natural, em péssimo estado de conservação, com freqüentes problemas de encanamento e eletricidade e o último a receber os alimentos tem um apelido sugestivo: "Favelão".
O diretor sabe que os novos egressos levarão apenas duas ou três semanas até se integrarem a uma das três máfias - apelidadas de famílias - que comandam o presídio: a das drogas, a dos medicamentos ou a da comida. Para sobreviver ali dentro é preciso obedecer ao código de honra imposto pelas quadrilhas organizadas.
- Doutor Pedrosa - grita esbaforido o agente Aparecido Flora da Silva. - Os detentos não suportaram nossos colegas.
Não suportaram significa renderam na linguagem penitenciária, presidida por uma lógica às avessas. São 14h. Pedrosa, experiente e zeloso, sente as primeiras gotas de suor na testa. Teme pela sorte dos subordinados, ainda sem saber que os carcereiros, cercados pelos dois lados, bateram em retirada. O Pavilhão 9 está sob total controle dos presidiários.
No gabinete do tenente-coronel Lelces André Pires de Moraes, comandante do 1º Batalhão de Polícia de Guarda, encarregado da segurança externa do presídio, entra resfolegante o major Abelardo Alves de Souza, subcomandante do batalhão.
Alguma coisa está ocorrendo no Pavilhão 9 - avisa.
Fonte: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos/fd050398b1.htm
Através de relatos o crime (ou não?) começava a ser resolvido...