Eu com certeza deixei muitos erros escaparem, não revisei o texto. :P
[size=44]Prólogo[/size]
Após um breve período de exposição ao luar, a floresta fronteiriça foi mais uma vez tomada pela escuridão. Aquela era uma região assombrada por vultos ligeiros que percorriam o emaranhado de árvores e vegetação nodosa, o que acabava por contribuir para com a sua péssima e fantasmagórica reputação perante os que peregrinavam entre os domínios de Feldergrunny e Blauthurm. Os viajantes sempre preferiram evitar aquelas terras, já que ali não existia nem ao menos uma simples trilha de terra batida para garantir sua segurança, enquanto que na estrada oficial eles certamente estariam a salvo de saqueadores e assassinos furtivos, além das supostas que criaturas que se esgueiravam por entre as penumbras daquela vastidão verde. Contudo, os caminhos convencionais expunham qualquer um aos olhos dos soldados que guardavam a fronteira entre os reinos, e uma comitiva daquele tamanho certamente chamaria atenção dos vigilantes, ainda mais um grupo de homens vestindo armaduras, couraças e portando espadas. Estavam também sem qualquer estandarte.
A verdade é que vagabundos como eu não fazem questão de carregar bandeiras coloridas. Nosso dever é pilhar e violar o maior número de mulheres que pudermos. Aquelas palavras foram o suficiente para que Wellar fosse nomeado o comandante daqueles cinquenta guerreiros tão bravos e perseverantes; se eram realmente tudo o que lhe disseram, o mercenário não tinha tanta certeza. A maior parte de seus companheiros era composta por bandidos tão brutos e sedentos de sangue quanto ele, enquanto que uma pequena parcela do grupo era representada pelos homens treinados pela Ordem Sacra e alguns poucos cavaleiros unidos pela aliança entre Elderoth e Feldergrunny. Era muito incômodo para um homem prático como ele ter que trabalhar em conjunto com um bando de moleques sacerdotes vestidos de aço como aqueles que pareciam ter acabado de sair debaixo das saias de suas mães. Os homens dos reinos também não foram do agrado de Wellar e vários deles fizeram questão de afirmar que a repulsa era recíproca, o que era bastante compreensível. Nenhum homem armado por um rei e consagrado pela intervenção divina da Ordem via dignidade num andarilho sujo, fedido e estranhamente esguio, ainda mais um dos mercenários com maior recompensa imposta por sua cabeça.
Porém, os dias de bandido procurado do mais novo comandante do exército real tiveram seu fim no momento em que Wellar colocou sua espada enferrujada a disposição da Aliança. Assim, devido às suas intenções de prestar serviços aos reis aliados, a Ordem Sacra concedeu-lhe todos os perdões necessários para que o mercenário pudesse andar pelas terras que o aceitaram sem preocupações. A desonra sempre estaria consigo, mas agora seria possível cometer todas as “atrocidades” que lhes eram de costume sem haver problemas com a justiça divina e real. O Deus Amoroso e os governantes submetidos ao desejo de expansão dos territórios da Ordem acabaram por legitimar os seus anseios mais puros e selvagens. Por mais que muitos negassem, a sensação de se dar fim a uma vida era tão maravilhosa quanto o ápice de uma relação entre um homem e uma mulher, e já havia tempos que Wellar se via muito mais satisfeito no assassinato do que nos prazeres carnais oferecidos por uma fêmea qualquer. Os gemidos de desespero tornaram-se muito mais gratificantes do que os berros vertiginosos das prostitutas impregnadas de pulgas que ele pudera ter a sua disposição com a pouca prata que havia conseguido arrecadar em seus anos de assassino contratado. Não sabia ao certo se aquilo era resultado de alguma doença ou feitiçaria, mas a sua sede de sangue vinha crescendo muito, e consequentemente o seu desejo fez com que sua fama se espalhasse de uma forma que havia fugido ao controle. Mas já não era importante ponderar a respeito de seus anseios, pois tinha um bando de guerreiros para comandar e um vilarejo para tomar antes que a manhã chegasse; lá ele poderia decidir se haveria alguma mulher digna de lhe dar prazer antes de sentir o seu aço atravessar suas entranhas.
-Comandante Esfarrapado, acorde – sussurrou uma voz em sua orelha esquerda, fazendo com que Wellar abrisse os olhos e brandisse sua espada rapidamente na direção de quem lhe falara. – Olha só, você está bem precavido, não é?
-Certamente que sim, já que não perco o meu tempo com odres de vinho fino, Senhor Brownystone.
Com um movimento veloz, o mercenário colocou-se em pé e fitou o ébrio Markus Brownystone e seu odre de vinho. Aquele talvez fosse um dos poucos membros da comitiva com algum renome e honrarias, mas era um combatente tão ruim que acabou tendo como destino um aglomerado dos soldados mais desprezíveis no ponto de vista de um detentor de terras. Sabia-se que a família Brownystone possuía uma pequena fortaleza na região central do território de Feldergrunny, mas apesar da riqueza do trono e de seus aliados Markus era apenas o filho do meio de um dos vassalos mais ignorados pelo Rei Nathan Greenwill dos Campos, o pouco abastado Titus. Todavia, a fama de fracasso e a falência econômica de seu pai não foram capazes de impedir que aquele rapaz estivesse protegido por uma bela e imponente armadura marrom ornamentada com rubis com pequenas representações de leopardos em ouro na placa de peito, portando também uma espada de aço refinado dourado e um escudo de pinheiros envolto em um pedaço de pele de leão. Apesar do glamour de suas vestimentas e armas, era possível notar que o corpo magro e doentio de Markus não se adequava bem à sua proteção e mais: estava claro que armaduras pesadas iriam apenas atrapalhá-lo num saque e provavelmente levá-lo à morte. No entanto, preferiu deixar que a sorte guiasse seu nobre companheiro rumo ao seu destino e não falou nada a respeito.
-Comandante Esfarrapado, o Senhor Oliver deseja falar-lhe a respeito do... – o vômito de embriaguez impediu que Brownystone concluísse sua mensagem debochada, o que deixou Wellar bastante feliz, já que estava prestes atravessar a goela de seu guerreiro para que não tivesse mais que ouvir suas asneiras.
-Ótimo, tenha bom sonhos, Lady Brownystone.
Markus ofereceu-lhe um último olhar de desprezo e caiu desmaiado à sombra de um carvalho. O golpe com o punho da espada que Wellar lhe dera certamente causaria um hematoma incômodo em sua nuca, além de algumas reclamações e injúrias. O que é que fiz de tão terrível? O rapaz precisava tirar uma soneca. Colocando a espada velha de volta na bainha de couro em retalhos, o tranquilo comandante seguiu em direção ao acampamento que havia sido montado pelo resto dos guerreiros que o acompanhavam. Fora uma decisão sábia de sua parte afastar-se daquele aglomerado de gente que não nutria tanto afeto por ele; ficar escondido entre as árvores, apesar dos demônios que talvez vivessem ali, seria muito mais seguro para um homem tão indesejado. Até mesmo a escória de sua comitiva não aceitava sua autoridade, o que viria a trazer uma série de problemas se eles viessem a cruzar com inimigos de Blauthurm. Era bastante natural que bandidos contratados debandassem em situações de perigo evidente, mas no momento em que os soldados se mostravam dispostos a trair seu próprio comandante, era um sinal bem claro de que partir o pão e a bebida com eles não era uma boa ideia.
Incrível como a desconfiança tomou conta de mim... Deve ser esta maldita floresta. E realmente devia ser. Assim como os boatos diziam, as copas das árvores compunham um horripilante teto de folhas acima de sua cabeça, fazendo com que, quando houvesse, o luar não pudesse penetrar e iluminar aquele local. A desconfiança era algo intrínseco ao ambiente, e o mercenário parecia estar sendo tomado pela atmosfera obscura que pairava por ali. Até mesmo seus desagradáveis companheiros perceberam que havia algo de diferente no solo em que pisavam, o que os levou à derrubada de algumas árvores para que pudessem ter uma área aberta para o acampamento de apenas uma tenda. Enquanto todos os outros dormiam no chão e partilhavam o pouco alimento que havia sobrado de sua última caçada, Senhor Oliver Bittes de Feldergrunny reinava supremo em sua pequena moradia composta por peles sujas e estacas, não deixando de oferecer um pouco de aconchego para Brownystone, assim como para os escudeiros de ambos.
Ao atravessar a maior parte do acampamento, Wellar vislumbrou a tenda alguns metros a sua frente. Dois bandidos maltrapilhos guardavam a passagem para o interior, lançando-lhe olhares maliciosos quando ele se colocou diante deles. Seguravam lanças simplórias e com suas pontas corroídas, mas pareciam ser o tipo mais comum de soldado pago para apenas saquear pequenos vilarejos. Wellar não via desonra no serviço, mas todos sabiam que, comparados a ele, aqueles dois não passavam de dois moleques roubadores de galinhas. As fuças extremamente parecidas davam-lhe a impressão de que aqueles dois pudessem ser irmãos ou algo do gênero.
Após acenar levemente com a cabeça, o mercenário atravessou a porta protegida por peles. O cheiro mofado da pelagem fez com que ele contorcesse seu nariz no exato momento em que foi iluminado pelos dois archotes presentes no interior da tenda. Apesar da sensação incômoda causada pelo mofo, era possível se sentir bastante confortável ali dentro. Diferentemente do abrigo proporcionado pelas árvores e gramíneas, aquela pequena construção estava bastante aquecida, além de ter algumas camas improvisadas com as carcaças de animais preservadas. E ali, sentado de pernas cruzadas e deliciando-se com uma perna de porco gorda e suculenta, estava o robusto Oliver Bitters, um senhor de terras de cabelos ruivos emaranhados e uma barba tão desgrenhada quanto. Gotículas de suor cobriam a face avermelhada de Bitters, assim como regava suas axilas com abundância por baixo da camiseta púrpura que vestia. No extremo mais distante da tenda, os dois escudeiros trocavam carícias e beijos, não parecendo incomodar Oliver e seu porco morto.
-Fui chamado, Senhor Bitters? – perguntou, sabendo que o maldito gordo suado mantinha seus olhos voltados para os restos de seu amado suíno. Como se acordasse de um sono profundo, Oliver levantou a cabeça lentamente e fixou seus olhos azulados na face de seu visitante. Jogando sua perna de porco para o lado, ele abriu um grande e amarelado sorriso.
-Oh, sim! Venha, sente-se comigo e coma um pouco, comandante.
Não havia lugar para se sentar além do chão, mas Wellar não dispensaria o calor proporcionado pelos archotes. Ao sentar-se, dispensou a carne oferecida por seu anfitrião, deixando que seu corpo pudesse ficar o mais próximo possível de uma das luminárias. Oliver limpou a boca com as costas da mão e voltou suas atenções para homem a sua frente.
-Muito bem. Como o senhor está? Animado para o nosso saque matutino?
-Mas é claro – ele sabia muito bem que o vilarejo que invadiriam não era grande coisa. Ali habitavam apenas camponeses e suas crianças de narizes vermelhos irritadiços. O problema verdadeiro era a vigília de guardas de Blauthurm, mas o inconveniente já havia sido premeditado e os homens da fronteira que pertenciam a Feldergrunny já deviam estar a postos para encurralar os incômodos guerreiros.
-Que bom, que bom... Ótimo! – bradou Bitters, tirando um odre de dentro de suas vestes púrpuras. Uma grande quantidade de vinho escorreu por sua grande barba ruiva, formando uma pequena poça escura no chão. – Você deve estar se perguntando o motivo de eu ter interrompido seu importante descanso, certamente.
-Não estou incomodado, Senhor. Os poucos problemas que tive para chegar a sua tenda já foram resolvidos.
-Problemas? Conte-me – disse o gordo ruivo, fingindo curiosidade.
-Tive que cuidar para que o Senhor Brownystone não se afogasse no próprio vômito.
-Pobrezinho... Mas não podemos negar que Markus é um tanto quanto inútil – um arroto escapuliu por entre os lábios volumosos de Oliver. – Perdão. Apesar do posto de cavaleiro oferecido a ele, todos os senhores das terras verdes sabem que os Brownystone não passam de uma casa falida e endividada com a coroa. Ah, sim, possuem poucas terras e suas espadas são bastante fracas.
-E qual seria a razão de um senhor tão poderoso como você abrigar um pobre coitado como Brownystone em sua tenda?
-Ah, foi inevitável – colocando-se em pé de uma maneira brusca, Oliver pegou seu odre de vinho e lançou contra os dois garotos no fundo da tenda. – Como pode ver, os nossos escudeiros são muito unidos, e seria indelicadeza da minha parte impedir que um servo se separe de seu mestre. Não é mesmo, moços?
Os dois soltaram risadinhas tímidas e trataram de consumir o restante do conteúdo do odre que não havia sido derramado. Então Oliver Bitters é um ferrenho defensor do direito de luxúria de dois escudeiros e mantém Brownystone em sua tenda como um sinal de respeito? Ele deve achar que sou algum idiota. E provavelmente achava, mas o homem fazia questão de manter aquela sua expressão amigável e fraterna, como se os dois fossem amigos e companheiros de batalha desde sempre.
-Então, diga-me o que deseja – Wellar já estava farto dos gracejos de Bitters. Finalizar a conversa rapidamente o afastaria dos archotes, mas ele não era um senhor de terras e não se sentia confortável dividindo uma tenda com um homem como aquele, ainda mais com aqueles escudeiros.
-Vou ser bastante sincero – disse Bitters, sentando-se novamente. – Não duvido de suas qualidades, mas desejo assumir o comando desta comitiva.
O pedido não lhe surpreendeu. Sabia que uma hora ou outra um dos senhores acabariam por questionar sua autoridade em alta voz, se é que já não o tinham feito enquanto ele se mantinha afastado do acampamento. Não posso ceder para um senhorzinho pomposo. Pela primeira vez na minha vida tenho alguma posição de renome, e se eu liderar o saque a maior parte do que obtivermos será minha. Era óbvio que se negasse o pedido de Oliver acabaria por gerar uma sensação de desconforto e mais olhares maliciosos para si, considerando que um senhor de terra poderia muito bem restituir o alto preço de sua cabeça para os outros bandidos da comitiva ganhassem algum ouro antes da invasão do vilarejo. No entanto, os perigos sempre estiveram a sua volta, e recuar naquele momento seria atestar sua incapacidade de domar aquelas bestas em forma humana. Sim, aquela era a melhor chance que tivera desde o seu nascimento numa vilazinha tão medíocre quanto aquela que sofreria o ataque da comitiva. Devo manter minha posição.
-Se sou capaz, acho que não deveria abandonar meu posto.
-Que tal um quarto do saque? É o suficiente para que você aceite minha proposta? – a carranca divertida e acolhedora de Bitters havia sumido por completo. Restava apenas uma expressão impaciente.
-Acha que pode comprar um comandante?
-Sim. Por mais que negue, você sempre será um mercenário – respondeu o homem, tirando uma adaga de seu bolso logo em seguida. – Sabe o quanto vale a minha pequena lâmina? Não deve saber, então terei a bondade de lhe dizer. Você poderá uma pequena fortaleza em Blauthurm depois que Elderoth e Feldergrunny subjulguem o maldito reino.
-Enfie a maldita lâmina em sua bunda gorda – Wellar levantou-se e desembainhou a espada enferrujada. – Ou prefere que eu mesmo o faça?
A tensão na tenda chamou a atenção dos escudeiros. Deixando suas carícias de lado por um instante, os dois meninos pegaram suas espadas e apontaram para Wellar. O senhor ruivo fez um sinal para que eles não fizessem nada, voltando a roer sua perna de porco engordurada. Ele sabe que eu não seria capaz de fazê-lo aqui. Os malditos soldados já devem ter sido comprados. No momento em que eu sair da tenda, estarei morto. A tensão tomou conta dos ombros do mercenário, enquanto que sua mão da espada ficava cada vez mais rígida diante da perspectiva de ter que lutar com quase cinquenta soldados. Era certo que a maior parte deles era composta por bandidos comuns que mal sabiam brandir uma espada, mas nem mesmo alguém como ele seria capaz de lidar com tantos de uma vez. Estavam ali, esperando que sua presa saísse da morada de seu novo líder, como uma comitiva de animais carniceiros.
Oliver deu-lhe um sorriso que contrastava com o instinto assassino de seus olhos claros. Ele percebeu que eu percebi... Eu estou morto. Morto.
-Muito bem. Fique a vontade para se retirar, comandante – após dizer as palavras solenemente, o homem voltou seus olhos para a sua carne, comendo como se estivesse num banquete entre amigos.
Dando as costas para Oliver Bitters, Wellar seguiu em direção à abertura da tenta, movendo a pelagem que a fechava. O calor ofertado pelo senhor ruivo desapareceu instantaneamente de seu corpo no momento em que a brisa tocou-lhe o rosto. Manterei a espada em mãos. Morrerei, mas levarei alguns bastardos para o inferno comigo. Contudo, os homens que guardavam a tenda não demonstraram interesse algum em sua arma exposta, e o mesmo ocorreu com os soldados que jaziam deitados ou jogando dados. Alguns portavam armas ou simplesmente as deixavam próximas, mas não pareciam estar dispostos a executá-lo.
Caminhando por entre o amontoado de gente deitada, o mercenário esperava que ao menos um deles fizesse uma movimentação ligeira e o atacasse repentinamente. Porém, os seus supostos assassinos permanecerem completamente inertes, sem demonstrar qualquer sinal além dos costumeiros olhares estranhos ou temerosos. Terminado a travessia e chegando ao fim do acampamento, Wellar sentia-se aliviado; deu uma última olhada para os homens que temera e seguiu em direção ás árvores que formavam seu abrigo noturno antes da destruição do vilarejo. Talvez Bitters queira acabar comigo com suas próprias mãos... Ou talvez não tenha tanto ouro assim. Uma vez protegido pelas sombras e galhos, fez com que a espada escorregasse para dentro da bainha. Não será mais necessário.
-Ela quer a todos, ela quer a todos, sim, ela quer – disse uma voz distante no meio das árvores mais a frente. – Ela deseja tudo, sim.
Um calafrio percorreu Wellar dos pés à cabeça. A voz continuava a repetir aquelas mesmas palavras, como se fosse o refrão de uma canção religiosa qualquer. Porém, não havia melodia naquela música, apenas um mórbido recitar com o som do vento tocando a copa das árvores. Algum maldito camponês deve ter se enfiado na floresta. Farei questão de arrancar-lhe a língua para que não perturbe mais ninguém.
Com passos longos e determinados, o mercenário atravessou as árvores e acabou encontrando o carvalho que havia lhe proporcionado repouso para as costas. Markus Brownystone continuava deitado com os seus olhos idiotas voltados para o céu encoberto pelas folhas das árvores. Um filete de sangue escorria de seus lábios pálidos e rachados, e o nariz aparentava estar quebrado, considerando a quantidade de sangue que saía de suas narinas. Contudo, o mais horripilante era o estado de sua barriga: no lugar onde existira uma saliência, restava apenas um buraco de sangue e tripas; os órgãos já não estavam ali.
-Ela quer a todos, ela quer a todos, quer sim!
O dono da voz dançava em volta do corpo de Brownystone lentamente, deixando pequenas pegadas na terra onde pisava. Era uma estranha criatura humanoide com pouco mais de um metro de altura, exibindo sua nudez pálida e gélida perante o corpo morto de Markus. O sangue do guerreiro de Feldergrunny banhava seu pequeno corpo, mas aquilo parecia não lhe incomodar nem um pouco. Ao olhar para o seu rosto, Wellar caiu de joelhos, aterrorizado com aquele rosto tribal e cinzento, exibindo grandes presas brancas saindo de sua boca pintada de vermelho. Dois chifres negros saíam de sua fronte apontando para cima, balançando levemente enquanto a criatura dançava e recitava suas mórbidas palavras.
-Ela quer seu sangue, quer sim, ela quer!
-Onde estou? Não consigo entender... Sou... Quem sou eu? – as palavras saíram de sua boca rapidamente. Seus pensamentos estavam totalmente embaralhados, mas o monstro de chifres não parecia ter escutado.
Enquanto olhava os movimentos da criatura, ele sentiu o mundo desabar e sentiu o sangue em sua boca após cair no chão. Suas costas estavam quentes e molhadas, mas sentia o suor gelado que pendia de suas bochechas marcadas por cicatrizes. Algum tempo depois, segundos ou horas, o dançarino foi até o seu corpo e percorreu um círculo em torno dele enquanto pulava e dizia suas palavras repetidamente. Sinto minhas costas... Estão quentes e frias! Sangue e ferro, eu acho...
-Venha para junto dela, venha juntar-se a ela!
Nome... Eu tenho um nome?
-Ela quer sua alma, ela quer sua alma!
A minha morte está sendo prazerosa? Sente o meu sangue?
-Ela quer, ela quer... Durma! Liberte a alma, liberte-a! Ame-a!
Minha alma. Não existe. Na morte, não existe nada além do vazio.
A verdade é que vagabundos como eu não fazem questão de carregar bandeiras coloridas. Nosso dever é pilhar e violar o maior número de mulheres que pudermos. Aquelas palavras foram o suficiente para que Wellar fosse nomeado o comandante daqueles cinquenta guerreiros tão bravos e perseverantes; se eram realmente tudo o que lhe disseram, o mercenário não tinha tanta certeza. A maior parte de seus companheiros era composta por bandidos tão brutos e sedentos de sangue quanto ele, enquanto que uma pequena parcela do grupo era representada pelos homens treinados pela Ordem Sacra e alguns poucos cavaleiros unidos pela aliança entre Elderoth e Feldergrunny. Era muito incômodo para um homem prático como ele ter que trabalhar em conjunto com um bando de moleques sacerdotes vestidos de aço como aqueles que pareciam ter acabado de sair debaixo das saias de suas mães. Os homens dos reinos também não foram do agrado de Wellar e vários deles fizeram questão de afirmar que a repulsa era recíproca, o que era bastante compreensível. Nenhum homem armado por um rei e consagrado pela intervenção divina da Ordem via dignidade num andarilho sujo, fedido e estranhamente esguio, ainda mais um dos mercenários com maior recompensa imposta por sua cabeça.
Porém, os dias de bandido procurado do mais novo comandante do exército real tiveram seu fim no momento em que Wellar colocou sua espada enferrujada a disposição da Aliança. Assim, devido às suas intenções de prestar serviços aos reis aliados, a Ordem Sacra concedeu-lhe todos os perdões necessários para que o mercenário pudesse andar pelas terras que o aceitaram sem preocupações. A desonra sempre estaria consigo, mas agora seria possível cometer todas as “atrocidades” que lhes eram de costume sem haver problemas com a justiça divina e real. O Deus Amoroso e os governantes submetidos ao desejo de expansão dos territórios da Ordem acabaram por legitimar os seus anseios mais puros e selvagens. Por mais que muitos negassem, a sensação de se dar fim a uma vida era tão maravilhosa quanto o ápice de uma relação entre um homem e uma mulher, e já havia tempos que Wellar se via muito mais satisfeito no assassinato do que nos prazeres carnais oferecidos por uma fêmea qualquer. Os gemidos de desespero tornaram-se muito mais gratificantes do que os berros vertiginosos das prostitutas impregnadas de pulgas que ele pudera ter a sua disposição com a pouca prata que havia conseguido arrecadar em seus anos de assassino contratado. Não sabia ao certo se aquilo era resultado de alguma doença ou feitiçaria, mas a sua sede de sangue vinha crescendo muito, e consequentemente o seu desejo fez com que sua fama se espalhasse de uma forma que havia fugido ao controle. Mas já não era importante ponderar a respeito de seus anseios, pois tinha um bando de guerreiros para comandar e um vilarejo para tomar antes que a manhã chegasse; lá ele poderia decidir se haveria alguma mulher digna de lhe dar prazer antes de sentir o seu aço atravessar suas entranhas.
-Comandante Esfarrapado, acorde – sussurrou uma voz em sua orelha esquerda, fazendo com que Wellar abrisse os olhos e brandisse sua espada rapidamente na direção de quem lhe falara. – Olha só, você está bem precavido, não é?
-Certamente que sim, já que não perco o meu tempo com odres de vinho fino, Senhor Brownystone.
Com um movimento veloz, o mercenário colocou-se em pé e fitou o ébrio Markus Brownystone e seu odre de vinho. Aquele talvez fosse um dos poucos membros da comitiva com algum renome e honrarias, mas era um combatente tão ruim que acabou tendo como destino um aglomerado dos soldados mais desprezíveis no ponto de vista de um detentor de terras. Sabia-se que a família Brownystone possuía uma pequena fortaleza na região central do território de Feldergrunny, mas apesar da riqueza do trono e de seus aliados Markus era apenas o filho do meio de um dos vassalos mais ignorados pelo Rei Nathan Greenwill dos Campos, o pouco abastado Titus. Todavia, a fama de fracasso e a falência econômica de seu pai não foram capazes de impedir que aquele rapaz estivesse protegido por uma bela e imponente armadura marrom ornamentada com rubis com pequenas representações de leopardos em ouro na placa de peito, portando também uma espada de aço refinado dourado e um escudo de pinheiros envolto em um pedaço de pele de leão. Apesar do glamour de suas vestimentas e armas, era possível notar que o corpo magro e doentio de Markus não se adequava bem à sua proteção e mais: estava claro que armaduras pesadas iriam apenas atrapalhá-lo num saque e provavelmente levá-lo à morte. No entanto, preferiu deixar que a sorte guiasse seu nobre companheiro rumo ao seu destino e não falou nada a respeito.
-Comandante Esfarrapado, o Senhor Oliver deseja falar-lhe a respeito do... – o vômito de embriaguez impediu que Brownystone concluísse sua mensagem debochada, o que deixou Wellar bastante feliz, já que estava prestes atravessar a goela de seu guerreiro para que não tivesse mais que ouvir suas asneiras.
-Ótimo, tenha bom sonhos, Lady Brownystone.
Markus ofereceu-lhe um último olhar de desprezo e caiu desmaiado à sombra de um carvalho. O golpe com o punho da espada que Wellar lhe dera certamente causaria um hematoma incômodo em sua nuca, além de algumas reclamações e injúrias. O que é que fiz de tão terrível? O rapaz precisava tirar uma soneca. Colocando a espada velha de volta na bainha de couro em retalhos, o tranquilo comandante seguiu em direção ao acampamento que havia sido montado pelo resto dos guerreiros que o acompanhavam. Fora uma decisão sábia de sua parte afastar-se daquele aglomerado de gente que não nutria tanto afeto por ele; ficar escondido entre as árvores, apesar dos demônios que talvez vivessem ali, seria muito mais seguro para um homem tão indesejado. Até mesmo a escória de sua comitiva não aceitava sua autoridade, o que viria a trazer uma série de problemas se eles viessem a cruzar com inimigos de Blauthurm. Era bastante natural que bandidos contratados debandassem em situações de perigo evidente, mas no momento em que os soldados se mostravam dispostos a trair seu próprio comandante, era um sinal bem claro de que partir o pão e a bebida com eles não era uma boa ideia.
Incrível como a desconfiança tomou conta de mim... Deve ser esta maldita floresta. E realmente devia ser. Assim como os boatos diziam, as copas das árvores compunham um horripilante teto de folhas acima de sua cabeça, fazendo com que, quando houvesse, o luar não pudesse penetrar e iluminar aquele local. A desconfiança era algo intrínseco ao ambiente, e o mercenário parecia estar sendo tomado pela atmosfera obscura que pairava por ali. Até mesmo seus desagradáveis companheiros perceberam que havia algo de diferente no solo em que pisavam, o que os levou à derrubada de algumas árvores para que pudessem ter uma área aberta para o acampamento de apenas uma tenda. Enquanto todos os outros dormiam no chão e partilhavam o pouco alimento que havia sobrado de sua última caçada, Senhor Oliver Bittes de Feldergrunny reinava supremo em sua pequena moradia composta por peles sujas e estacas, não deixando de oferecer um pouco de aconchego para Brownystone, assim como para os escudeiros de ambos.
Ao atravessar a maior parte do acampamento, Wellar vislumbrou a tenda alguns metros a sua frente. Dois bandidos maltrapilhos guardavam a passagem para o interior, lançando-lhe olhares maliciosos quando ele se colocou diante deles. Seguravam lanças simplórias e com suas pontas corroídas, mas pareciam ser o tipo mais comum de soldado pago para apenas saquear pequenos vilarejos. Wellar não via desonra no serviço, mas todos sabiam que, comparados a ele, aqueles dois não passavam de dois moleques roubadores de galinhas. As fuças extremamente parecidas davam-lhe a impressão de que aqueles dois pudessem ser irmãos ou algo do gênero.
Após acenar levemente com a cabeça, o mercenário atravessou a porta protegida por peles. O cheiro mofado da pelagem fez com que ele contorcesse seu nariz no exato momento em que foi iluminado pelos dois archotes presentes no interior da tenda. Apesar da sensação incômoda causada pelo mofo, era possível se sentir bastante confortável ali dentro. Diferentemente do abrigo proporcionado pelas árvores e gramíneas, aquela pequena construção estava bastante aquecida, além de ter algumas camas improvisadas com as carcaças de animais preservadas. E ali, sentado de pernas cruzadas e deliciando-se com uma perna de porco gorda e suculenta, estava o robusto Oliver Bitters, um senhor de terras de cabelos ruivos emaranhados e uma barba tão desgrenhada quanto. Gotículas de suor cobriam a face avermelhada de Bitters, assim como regava suas axilas com abundância por baixo da camiseta púrpura que vestia. No extremo mais distante da tenda, os dois escudeiros trocavam carícias e beijos, não parecendo incomodar Oliver e seu porco morto.
-Fui chamado, Senhor Bitters? – perguntou, sabendo que o maldito gordo suado mantinha seus olhos voltados para os restos de seu amado suíno. Como se acordasse de um sono profundo, Oliver levantou a cabeça lentamente e fixou seus olhos azulados na face de seu visitante. Jogando sua perna de porco para o lado, ele abriu um grande e amarelado sorriso.
-Oh, sim! Venha, sente-se comigo e coma um pouco, comandante.
Não havia lugar para se sentar além do chão, mas Wellar não dispensaria o calor proporcionado pelos archotes. Ao sentar-se, dispensou a carne oferecida por seu anfitrião, deixando que seu corpo pudesse ficar o mais próximo possível de uma das luminárias. Oliver limpou a boca com as costas da mão e voltou suas atenções para homem a sua frente.
-Muito bem. Como o senhor está? Animado para o nosso saque matutino?
-Mas é claro – ele sabia muito bem que o vilarejo que invadiriam não era grande coisa. Ali habitavam apenas camponeses e suas crianças de narizes vermelhos irritadiços. O problema verdadeiro era a vigília de guardas de Blauthurm, mas o inconveniente já havia sido premeditado e os homens da fronteira que pertenciam a Feldergrunny já deviam estar a postos para encurralar os incômodos guerreiros.
-Que bom, que bom... Ótimo! – bradou Bitters, tirando um odre de dentro de suas vestes púrpuras. Uma grande quantidade de vinho escorreu por sua grande barba ruiva, formando uma pequena poça escura no chão. – Você deve estar se perguntando o motivo de eu ter interrompido seu importante descanso, certamente.
-Não estou incomodado, Senhor. Os poucos problemas que tive para chegar a sua tenda já foram resolvidos.
-Problemas? Conte-me – disse o gordo ruivo, fingindo curiosidade.
-Tive que cuidar para que o Senhor Brownystone não se afogasse no próprio vômito.
-Pobrezinho... Mas não podemos negar que Markus é um tanto quanto inútil – um arroto escapuliu por entre os lábios volumosos de Oliver. – Perdão. Apesar do posto de cavaleiro oferecido a ele, todos os senhores das terras verdes sabem que os Brownystone não passam de uma casa falida e endividada com a coroa. Ah, sim, possuem poucas terras e suas espadas são bastante fracas.
-E qual seria a razão de um senhor tão poderoso como você abrigar um pobre coitado como Brownystone em sua tenda?
-Ah, foi inevitável – colocando-se em pé de uma maneira brusca, Oliver pegou seu odre de vinho e lançou contra os dois garotos no fundo da tenda. – Como pode ver, os nossos escudeiros são muito unidos, e seria indelicadeza da minha parte impedir que um servo se separe de seu mestre. Não é mesmo, moços?
Os dois soltaram risadinhas tímidas e trataram de consumir o restante do conteúdo do odre que não havia sido derramado. Então Oliver Bitters é um ferrenho defensor do direito de luxúria de dois escudeiros e mantém Brownystone em sua tenda como um sinal de respeito? Ele deve achar que sou algum idiota. E provavelmente achava, mas o homem fazia questão de manter aquela sua expressão amigável e fraterna, como se os dois fossem amigos e companheiros de batalha desde sempre.
-Então, diga-me o que deseja – Wellar já estava farto dos gracejos de Bitters. Finalizar a conversa rapidamente o afastaria dos archotes, mas ele não era um senhor de terras e não se sentia confortável dividindo uma tenda com um homem como aquele, ainda mais com aqueles escudeiros.
-Vou ser bastante sincero – disse Bitters, sentando-se novamente. – Não duvido de suas qualidades, mas desejo assumir o comando desta comitiva.
O pedido não lhe surpreendeu. Sabia que uma hora ou outra um dos senhores acabariam por questionar sua autoridade em alta voz, se é que já não o tinham feito enquanto ele se mantinha afastado do acampamento. Não posso ceder para um senhorzinho pomposo. Pela primeira vez na minha vida tenho alguma posição de renome, e se eu liderar o saque a maior parte do que obtivermos será minha. Era óbvio que se negasse o pedido de Oliver acabaria por gerar uma sensação de desconforto e mais olhares maliciosos para si, considerando que um senhor de terra poderia muito bem restituir o alto preço de sua cabeça para os outros bandidos da comitiva ganhassem algum ouro antes da invasão do vilarejo. No entanto, os perigos sempre estiveram a sua volta, e recuar naquele momento seria atestar sua incapacidade de domar aquelas bestas em forma humana. Sim, aquela era a melhor chance que tivera desde o seu nascimento numa vilazinha tão medíocre quanto aquela que sofreria o ataque da comitiva. Devo manter minha posição.
-Se sou capaz, acho que não deveria abandonar meu posto.
-Que tal um quarto do saque? É o suficiente para que você aceite minha proposta? – a carranca divertida e acolhedora de Bitters havia sumido por completo. Restava apenas uma expressão impaciente.
-Acha que pode comprar um comandante?
-Sim. Por mais que negue, você sempre será um mercenário – respondeu o homem, tirando uma adaga de seu bolso logo em seguida. – Sabe o quanto vale a minha pequena lâmina? Não deve saber, então terei a bondade de lhe dizer. Você poderá uma pequena fortaleza em Blauthurm depois que Elderoth e Feldergrunny subjulguem o maldito reino.
-Enfie a maldita lâmina em sua bunda gorda – Wellar levantou-se e desembainhou a espada enferrujada. – Ou prefere que eu mesmo o faça?
A tensão na tenda chamou a atenção dos escudeiros. Deixando suas carícias de lado por um instante, os dois meninos pegaram suas espadas e apontaram para Wellar. O senhor ruivo fez um sinal para que eles não fizessem nada, voltando a roer sua perna de porco engordurada. Ele sabe que eu não seria capaz de fazê-lo aqui. Os malditos soldados já devem ter sido comprados. No momento em que eu sair da tenda, estarei morto. A tensão tomou conta dos ombros do mercenário, enquanto que sua mão da espada ficava cada vez mais rígida diante da perspectiva de ter que lutar com quase cinquenta soldados. Era certo que a maior parte deles era composta por bandidos comuns que mal sabiam brandir uma espada, mas nem mesmo alguém como ele seria capaz de lidar com tantos de uma vez. Estavam ali, esperando que sua presa saísse da morada de seu novo líder, como uma comitiva de animais carniceiros.
Oliver deu-lhe um sorriso que contrastava com o instinto assassino de seus olhos claros. Ele percebeu que eu percebi... Eu estou morto. Morto.
-Muito bem. Fique a vontade para se retirar, comandante – após dizer as palavras solenemente, o homem voltou seus olhos para a sua carne, comendo como se estivesse num banquete entre amigos.
Dando as costas para Oliver Bitters, Wellar seguiu em direção à abertura da tenta, movendo a pelagem que a fechava. O calor ofertado pelo senhor ruivo desapareceu instantaneamente de seu corpo no momento em que a brisa tocou-lhe o rosto. Manterei a espada em mãos. Morrerei, mas levarei alguns bastardos para o inferno comigo. Contudo, os homens que guardavam a tenda não demonstraram interesse algum em sua arma exposta, e o mesmo ocorreu com os soldados que jaziam deitados ou jogando dados. Alguns portavam armas ou simplesmente as deixavam próximas, mas não pareciam estar dispostos a executá-lo.
Caminhando por entre o amontoado de gente deitada, o mercenário esperava que ao menos um deles fizesse uma movimentação ligeira e o atacasse repentinamente. Porém, os seus supostos assassinos permanecerem completamente inertes, sem demonstrar qualquer sinal além dos costumeiros olhares estranhos ou temerosos. Terminado a travessia e chegando ao fim do acampamento, Wellar sentia-se aliviado; deu uma última olhada para os homens que temera e seguiu em direção ás árvores que formavam seu abrigo noturno antes da destruição do vilarejo. Talvez Bitters queira acabar comigo com suas próprias mãos... Ou talvez não tenha tanto ouro assim. Uma vez protegido pelas sombras e galhos, fez com que a espada escorregasse para dentro da bainha. Não será mais necessário.
-Ela quer a todos, ela quer a todos, sim, ela quer – disse uma voz distante no meio das árvores mais a frente. – Ela deseja tudo, sim.
Um calafrio percorreu Wellar dos pés à cabeça. A voz continuava a repetir aquelas mesmas palavras, como se fosse o refrão de uma canção religiosa qualquer. Porém, não havia melodia naquela música, apenas um mórbido recitar com o som do vento tocando a copa das árvores. Algum maldito camponês deve ter se enfiado na floresta. Farei questão de arrancar-lhe a língua para que não perturbe mais ninguém.
Com passos longos e determinados, o mercenário atravessou as árvores e acabou encontrando o carvalho que havia lhe proporcionado repouso para as costas. Markus Brownystone continuava deitado com os seus olhos idiotas voltados para o céu encoberto pelas folhas das árvores. Um filete de sangue escorria de seus lábios pálidos e rachados, e o nariz aparentava estar quebrado, considerando a quantidade de sangue que saía de suas narinas. Contudo, o mais horripilante era o estado de sua barriga: no lugar onde existira uma saliência, restava apenas um buraco de sangue e tripas; os órgãos já não estavam ali.
-Ela quer a todos, ela quer a todos, quer sim!
O dono da voz dançava em volta do corpo de Brownystone lentamente, deixando pequenas pegadas na terra onde pisava. Era uma estranha criatura humanoide com pouco mais de um metro de altura, exibindo sua nudez pálida e gélida perante o corpo morto de Markus. O sangue do guerreiro de Feldergrunny banhava seu pequeno corpo, mas aquilo parecia não lhe incomodar nem um pouco. Ao olhar para o seu rosto, Wellar caiu de joelhos, aterrorizado com aquele rosto tribal e cinzento, exibindo grandes presas brancas saindo de sua boca pintada de vermelho. Dois chifres negros saíam de sua fronte apontando para cima, balançando levemente enquanto a criatura dançava e recitava suas mórbidas palavras.
-Ela quer seu sangue, quer sim, ela quer!
-Onde estou? Não consigo entender... Sou... Quem sou eu? – as palavras saíram de sua boca rapidamente. Seus pensamentos estavam totalmente embaralhados, mas o monstro de chifres não parecia ter escutado.
Enquanto olhava os movimentos da criatura, ele sentiu o mundo desabar e sentiu o sangue em sua boca após cair no chão. Suas costas estavam quentes e molhadas, mas sentia o suor gelado que pendia de suas bochechas marcadas por cicatrizes. Algum tempo depois, segundos ou horas, o dançarino foi até o seu corpo e percorreu um círculo em torno dele enquanto pulava e dizia suas palavras repetidamente. Sinto minhas costas... Estão quentes e frias! Sangue e ferro, eu acho...
-Venha para junto dela, venha juntar-se a ela!
Nome... Eu tenho um nome?
-Ela quer sua alma, ela quer sua alma!
A minha morte está sendo prazerosa? Sente o meu sangue?
-Ela quer, ela quer... Durma! Liberte a alma, liberte-a! Ame-a!
Minha alma. Não existe. Na morte, não existe nada além do vazio.