UMA BRISA SUAVE ENTROU PELA JANELA DO OITAVO ANDAR. Apesar de muito cedo, o sol já ameaçava brilhar tímido no horizonte. Gordon Freeman olhou cegamente para o relógio na cabeceira. Seis horas. Sentou- se na cama e observou o quarto, como de costume, tomando nota do iria vestir em seu subconsciente. Ele revirara todo o lençol da cama pela terceira noite.
Gordon era um homem forte, porém magricelo, seus olhos verdes ocultos pelos óculos de aros negros e lentes meio riscadas. Morava num apartamento no centro de Socorro, no Novo México. Não era escolha sua morar lá. Mas Gordon preferia economizar com a moradia para desfrutar de um futuro mais confortável. O Dr. Freeman, como era chamado em seu trabalho, era formado em física quântica e PHD em física teórica pela MIT.
Gordon trabalhava para Black Mesa Research Facility, um laboratório secreto, que, obviamente, era especializado em experiências da física que eram acima do nível conhecido pelos humanos. Esse laboratório era comandado pelo governo dos EUA, através de um intermediário: o Dr. Walace Breen. Ao contrário de Gordon, Dr. Breen era velho, de cabelos bem curtos e grisalhos e aparência de poucos amigos. Ninguém nunca vira o Dr. Breen, o que muitos reconheciam como alívio, devido aos comentários de seu rigor com o trabalho.
Black Mesa era afastado da cidade, bem no meio do deserto, oculta pelas areias e pelos cânions. Só haviam duas maneiras de se chegar lá: de helicóptero e de trem. Logo no fim da cidade, perto da placa de entrada da cidade, havia uma velha estação de trem, que já estava desativada a quinze anos. Todos os funcionários de Black Mesa entravam por lá.
O relógio do carro marcou seis e quarenta e cinco quando o carro de Gordon parou na estação, levantando uma nuvem de poeira. Do lado de fora, duas outras pessoas estavam paradas, parecendo discutir.
-Bom dia Dr. Freeman. - falou um homem de jaleco branco e óculos de aros quadrados.
-Ah!, Bom dia Isaac. - respondeu Gordon num tom simpático. -Pelo visto ainda não convenceu o Dr. Vance a pedir Anne em casamento.
-São questões que não gosto de discutir no trabalho – defendeu-se o outro homem.
-Ora Eli, nós nem entramos no trem ainda! - disse Isaac rindo.
Gordon desceu as escadarias da plataforma, desviando-se dos corrimões retorcidos e enferrujados. Isaac e Eli desceram também, começando uma conversa sobre cadeias de proteínas que não conseguiam se polimerizar.
A plataforma era iluminada por luzes pequenas e ligeiramente amarelas, cobertas de limo e poeira. Não haviam cadeiras nem qualquer atmosfera acolhedora naquele lugar. Nem mesmo ratos eram vistos.
Quando o relógio marcou sete horas, duas luzinhas, iguais dois olhos felinos no escuro, apareceram no túnel, informando que o trem estava chegando. Não era um trem comum. Haviam poucas janelas espalhadas pelos quatro vagões acinzentados, chapiscados de lodo e terra nos lados. Quando o trem parou, uma pequena porta se abriu, fazendo um barulho surdo. Não havia ninguém no interior. Nem condutor ou outro ocupante qualquer. Então uma voz feminina falou de dentro, parecendo vir do além. - “Bom dia senhores”.
Ninguém perdia tempo respondendo para a máquina que repetia sempre as mesmas falas todos os dias. Os três entraram e procuraram um lugar para sentar. Não era difícil porque todos os bancos estavam vazios. A voz anunciou que o trem iria partir quando uma vos vinda de fora gritava freneticamente para que o trem o esperasse.
Correndo como um louco, um homem forte e desengonçado tentava enfiar o braço por entre a manga do uniforme. Gordon parou na porta do trem, impedindo o fechamento, para que o homem atrasado pudesse embarcar.
-Atrasado de novo Barney? - indagou Gordon, dando espaço para o homem entrar.
-Estou... fazendo... turno... extra... - ofegou, dando uma pequena engasgada pela arrancada do trem. Depois parou, sentou-se num canto e enxugou o rosto na manga. -Para o natal sabe. Queria ir para Orlando, visitar meu pai.
-Sei, mas toma cuidado para sobreviver até lá! - advertiu Isaac, dando um tapinha em suas costas. -Ou vamos ter que te clonar para trabalhar no nosso turno. Ninguém merece o Calton. Ele não entendo nada de física.
-Porque não tentaram outro policial para me substituir? - perguntou Barney.
-São questões de princípios, meu caro, princípios! - respondeu Eli, arrancando risadas de todos.
O trem agora corria a toda velocidade, as colunas de terra passando pela janela como um borrão laranja. Barney conversava com Gordon sobre a tubulação de ar e como tinha bolado uma forma de entrar e sair mais rápido e Isaac redigia junto com Eli uma espécie de fórmula experimental, gesticulando palavras e números no ar. Quando o trem fez uma curva fechada para a esquerda, fazendo os ocupantes escorregarem para o lado, a voz do além voltou a falar:
“Bem vindos à Black Mesa. Você está no trem de embarque e desembarque de visitantes e funcionários. O trem agora está a cem metros da superfície. Níveis de oxigênio e umidade normais.”
-Eu me pergunto, - começou Eli – quando é que a entrada exclusiva para nós ficará pronta.
-Hum, faço essa pergunta desde que entrei aqui, se você quer saber. - respondeu Gordon.
O trem começara a sacolejar e estremecer. Estavam chegando perto da área de testes. A interferência magnética do local era tão forte que certa vez Gordon achou que o trem ia se desintegrar com todo mundo dentro. A voz feminina soou novamente:
“Área de testes em dois minutos. Por favor, acione a porta para descer. Tenha um bom dia!”
Isaac e Eli se levantaram e pararam perto da porta. O trem começou a desacelerar e pela janela podia-se ver um laboratório gigante totalmente divisado com vidros surgindo no meio da terra. Eles desceram e deixaram Gordon e Barney sozinhos. O trem recomeçou a andar, agora rumando para cima. O ambiente começava a mudar, com feixes de luz cruzando as paredes penetrando nos vagões. A voz voltara:
“Recepção e registros em cinco minutos. Por favor, acione a porta para descer. Lembre-se: não corra, coma ou beba nos laboratórios. Tenha um bom e produtivo dia!”
-É aqui que descemos caro amigo. - alertou Gordon, cutucando Barney que pegara no sono. O trem parou e os dois desceram. Segundos depois o trem já partia de novo, em grande velocidade.
O prédio da recepção e registros era um dos maiores. Um grande salão na entrada revelava uma recepção, apinhada de gente por todos os lados. Um grande balcão de mármore branco ficava no fim do salão, com duas lindas jovens como secretárias de atendimento.
- Bom dia Dr. Freeman. – disse uma das moças de cabelos acaju, recolhendo o cartão de ponto. – Prontinho. – devolveu o cartão com um sorriso. Freeman acenou para Barney, que tomava um caminho diferente.
Gordon trabalhava no laboratório de estudos de artefatos anômalos. Sua função era desvendar a composição minuciosa dos componentes de coisas encontradas pelo mundo e pelo espaço. Por regra todos que trabalhavam neste laboratório usavam um traje especial, projetado para suportar impactos e todos os tipos de radiação. O HEV Suite (Hazardous Environment Suit – Traje de Ambiente Perigoso) era uma vestimenta cujos componentes ainda são um mistério, que matinha o usuário em estado de saúde estável e fornecia proteção o tempo todo. O traje tinha que ser recarregado conforme o uso, sendo possível alimentá-lo com energia e com força vital.
Gordon virou à saída da direita, como sempre fazia, entrando em um corredor de pedra e grades de metal no chão, protegendo os inúmeros cabos de energia que por ali passavam.
Ele nem havia chegado à metade do caminho e uma das jovens da recepção vinha correndo logo atrás.
-Dr. Freeman... - ofegava ela, quase caindo no corredor. - Dr. Freeman... por favor!
-Sim? - respondeu Gordon sem saber do que se tratava.
-Dr. Freeman, sua estagiária já chegou. - disse a recepcionista tentando se recompor.
-É mesmo? - Gordon esquecera-se disso. Uma aluna do MIT o havia procurado alguns meses para fazer um estágio em BlackMesa. - E onde ela está?
-Ah, está com o Dr. Kleiner na área de testes. Eles o encontrarão no laboratório logo mais.
-Certo. Obrigado.
Gordon agradeceu e saiu novamente pelo corredor. No meio do caminho, Gordon passou pelo refeitório. Não era bem um refeitório. Uma sala cúbica de uns nove metros quadrados com uma mesinha redonda e algumas máquinas de bebidas e salgadinhos. À um canto uma máquina de café parecia fazer sucesso entre os presentes. Um dos ocupantes da sala acenou para Gordon quando ele passou.
No fim do corredor havia uma bifurcação. A ala da direita levava ao vestiário dos funcionários. A da esquerda ao elevador de acesso aos laboratórios.
Gordon seguiu para o vestiário, despiu-se, guardou os pertences no armário intitulado com seu nome, e se dirigiu a saleta dos trajes HEV. Era um ambiente simples, com algumas cabines estreitas, na qual jaziam os trajes. Era uma vestimenta parecida com uma armadura, de cores meio cobre e laranja, que cobriam todo o corpo, inclusive a cabeça, sendo esta a única parte removível com facilidade. Gordon abriu a escotilha e começou a vestir as partes do traje. Depois de colocar o capacete, o traje emitiu um som mecânico e uma voz robótica exclamou.
“Níveis de oxigênio normais. Saúde estabilizada. Energia ativa.”
Gordon saiu do vestiário e rumou para o elevador de acesso. Apesar de usá-lo a um certo tempo, ainda não se acostumara às inúmeras voltas que ele dava enquanto descia.
Depois de muitos rodopios, seu estômago se contorcia freneticamente. Quando terminasse o serviço ele iria até o refeitório procurar alguma coisa pra roer.
Então algo esquisito aconteceu. Gordon sentiu sua cabeça doer intensamente e o ambiente desaparecera. Por instantes ele ouvira apenas sua respiração. Então uma voz grave e ligeiramente rouca falou do nada.
-Está na hora, Doutor Freeman!