O poeta latino Ênio (século II a.C.) conhecia três línguas: latim, grego e osco. Dizia possuir três almas. Imaginem quantas dezenas de almas deveria ter o cardeal Giuseppe Mezzofanti, um dos mais notáveis poliglotas de todos os tempos. Ele entrou para a história dos recordes por conhecer perfeitamente 56 idiomas, balbuciar mais outros 22, falar infinidade de dialetos e conseguir traduzir umas 114 línguas. Só poderia ser um gênio, sem sombra de dúvida, pensa a quase absoluta maioria das pessoas. Mas será que para atingir tal capacidade não se depende também de circunstâncias favoráveis?
A maioria dos autores de artigos e livros sobre o cardeal Mezzofanti aborda-o como um gênio, um “iluminado”. Afinal de contas, como podemos explicar a capacidade surpreendente de Giuseppe para aprender tantas línguas? Mas, a princípio, nada é impossível para ninguém, inclusive para as pessoas comuns se conseguirem “ativar”seus potenciais “adormecidos”. Se a inteligência e a paciência ajudam, o ambiente é mais determinante ainda.
E tudo influenciou - inteligência e ambiente- para que Mezzofanti acabasse tornando-se o mais prestigiado poliglota da história. Afinal de contas, ele tinha imensa capacidade de memória, força de vontade, ambiente tranquilo e propício para dedicar-se de corpo e alma ao estudo de línguas e, certamente, a nada desprezível ajuda de “Deus” o qual representava na Terra como religioso.
Giuseppe Mezzofanti nasceu em 1774 na cidade italiana de Bolonha. Sua família era pobre. Desde cedo, seu pai desejava que Giuseppe viesse a tornar-se artesão. Mas um padre descobriu no menino aptidões notáveis para o estudo e levou-o para uma escola eclesiástica. Com o passar dos anos, Mezzofanti entrou para o seminário episcopal, onde notabilizou-se por sua prodigiosa e surpreendente memória. Era capaz de ler uma página inteira de um livro em latim de São João Crisóstomo e de recitá-la inteira sem olhar para o texto.
Nesse mesmo tempo, passou a estudar línguas. No começo, latim e grego, idiomas ensinados dentro do circuito eclesiástico. Depois, foi colecionando conhecimentos de outras línguas, uma a uma, às dezenas, tal como um “playboy” conquista uma legião de amantes.
Depois de ordenado padre em 1797, passou a trabalhar como professor de árabe na Universidade de Bolonha. Levava uma vida tranquila e voltada ao estudo de idiomas. Nem as turbulências de seu tempo chegaram a atrapalhar sua tranquilidade. Napoleão Bonaparte invadiu a Itália e a pacata Bolonha escutou o barulho cadenciado das botas dos soldados do imperador francês marchando por suas ruas. Mas foi por pouco tempo. O padre não sofreu com as auguras da invasão a não ser um breve afastamento de suas funções de professor da universidade por negar-se a prestar juramento a Napoleão. Os austríacos retomaram a cidade e Giuseppe foi reconduzido ao cargo onde voltou a ensinar grego e línguas orientais.
Ocupou os cargos de conservador da biblioteca municipal e de reitor da universidade de Bolonha. Recebera convites para lecionar em Florença, Roma e Viena do Grão-Duque da Toscana, do Papa Pio VII e do imperador austríaco Francisco I respectivamente, mas nada levava Mezzofanti a deixar sua bucólica Bolonha. Porém, em 1832, o Papa Gregório XVI o nomeou conservador da Biblioteca do Vaticano. Para lá, mudou-se Giuseppe e, seis anos depois, foi-lhe conferido o título de cardeal.
Na vizinha Roma (o Vaticano ocupa meio quilômetro quadrado no centro da capital italiana), o cardeal trabalhou também como professor do Colégio da Propaganda, uma instituição onde estudavam alunos vindos dos mais variados países. Perfeito para Mezzofanti treinar diariamente seu conhecimento de línguas. Seu passatempo predileto era passear pelo pátio do colégio e conversar com os alunos em seus idiomas pátrios.
Giuseppe era visitado frequentemente por embaixadores, literários, nobres, refugiados políticos com os quais exercitava seu conhecimento de idiomas, para espanto dos próprios falantes admirados pela perfeição da pronúncia, vocabulário e correção sintática daquele cardeal.
Falando em polonês com o czar da Rússia, Nicolau, Mezzofanti chegou a lhe corrigir discretamente pequenos erros de gramática cometidos pelo monarca naquele idioma. Com o poeta inglês Byron, palestrava em grego erudito. Já no encontro com o imperador austríaco Francisco I, tagarelava em croata, língua da atual Croácia, república que pertencia à Iugoslávia poucos anos atrás. Já com seu amigo francês A. Manavit, dirigia-se em provençal, idioma outrora muito difundido no sul daquele país.
Manavit escreveu um livro sobre a vida de Mezzofanti que recebeu o título de “Esquisse Historique sur le Cardinal Mezzofanti” (Resumo Histórico sobre a Vida do Cardeal Mezzofanti). A obra foi publicada em 1853, quatro anos depois da morte do poliglota.
Neste livro, Manavit conta que, em 1843, um conselheiro de Estado Russo chamado Muravief interrogou Mezzofanti sobre o número de línguas que conhecia. O cardeal respondeu-lhe escrevendo a palavra “Deus”em 56 idiomas. Já em 1846, de acordo com outro relato da época, o cardeal já se expressava em 78 línguas, inclusive algumas de índios norte americanos, de africanos e de ciganos.
E Mezzofanti não era desses abobados que se dizem falantes de dezenas de idiomas, mas que, na realidade, só conhecem uma meia dúzia de frases básicas memorizadas das línguas mais exóticas e desconhecidas do público com as quais tentam passar-se por poliglotas perante os leigos e que se embasbacam todo quando deparam-se com algum estrangeiro que lhes interroga no idioma que supostamente dizem que conhecem perfeitamente. As línguas são complexas. Conhecer um idioma estrangeiro com profundidade é obra de uma vida inteira dedicada aos estudos. Por isso, quando alguém se diz poliglota, deve-se olhar com desconfiança. Não é impossível ser poliglota e dominar dezenas de idiomas com alguma perfeição. Apenas que, para chegar a esse resultado, necessita-se de estudo e viagens. Sim, viagens. Afinal, Charles Berlitz, neto do fundador da conceituada escola de idiomas Berlitz e autor de livros sobre assuntos misteriosos como “O Triângulo das Bermudas”, “As Línguas do Mundo”, “Atlântida”, “1999- O ano do fim do Mundo”, entre outros, conhece 50 idiomas. Mas para alcançar tal façanha, Berlitz viveu em muitos países do mundo onde aplicou na prática o que aprendia em estudo metódico e aplicado. Porém pergunto-me: será que ele é capaz que escrever uma crônica qualquer com a perfeição que tem ao escrever em sua própria língua materna, nos 50 idiomas que diz conhecer?
Mas Mezzofanti era alguém excepcional. Falava e escrevia nas mais diversas línguas com perfeição notável. Inúmeros estrangeiros comprovaram seu domínio pródigo com os idiomas. Porém vale lembrar que o cardeal só dedicou-se exclusivamente a ensinar e aprender línguas. Portanto, não há motivo para espanto. Passava todo o tempo livre que dispunha, entre uma aula e outra, para viver enclausurado numa biblioteca estudando. Possuía força de vontade monumental para “devorar”os manuais, dicionários e gramáticas que lhe caíssem às mãos. Além disso, vivia num ambiente de muita tranquilidade e era sustentado pela igreja. Não tinha outras preocupações na vida a não ser seus estudos. Não é de se espantar que tenha conseguido tão surpreendente capacidade intelectual nessa área de conhecimento.
E nem precisou viver em outros países para aprender e aperfeiçoar idiomas. Giuseppe nunca ausentou-se da Itália. Viveu em Bolonha e Roma (Vaticano). Viajou apenas a Modena, Livorno e Pisa, onde o cardeal visitou sinagogas com o único objetivo de escutar a entonação do hebraico falado pelos rabinos. Quer dizer, o poliglota não perdia qualquer oportunidade para escutar ou conservar, em seus próprios idiomas, com estrangeiros que morassem ou estivessem de passagem pela Itália.
Apesar do grande conhecimento em línguas, Mezzofanti não deixou nenhuma obra escrita sobre o assunto. O único trabalho de sua autoria que ficou para a posteridade foi um elogio em latim para seu professor de grego, Emmanuelle d’Aponte. Ele escreveu inúmeros outros trabalhos, mas, por julgá-los imperfeitos, queimou-os.
O cardeal tinha um aluno preferido- o abade Menarelli, seu sobrinho, filho de sua irmã. Talvez a ele, Mezzofanti tivesse transmitido os segredos de como aprender tantas línguas com eficiência e conhecimento de seu método chegasse até hoje. Mas Menarelli morreu muito moço.
No livro de Manavit, abordaram-se superficialmente as teorias de Mezzofanti a respeito da origem e do parentesco comum entre quase todas as línguas do mundo. Será que o famoso cardeal acreditava na existência da ‘Lingua Mater’? Hoje essa idéia foi abandonada pela ciência linguística, mas, com os relatos do cardeal, talvez o caminho para a solução desse enigma ainda poderia ter prosseguimento para os pesquisadores que se enveredassem por esse assunto.
Se o cardeal não tivesse ateado fogo em seus manuscritos, talvez hoje pudéssemos conhecer mais detalhes sobre a trajetória desse poliglota sucedido. No entanto, conforme relata o biógrafo Manavit, sabe-se pelo menos que um de seus métodos principais era concentrar-se exclusivamente no estudo de uma língua por vez para que tal esforço resultasse na possibilidade de o estudante, ao dormir, só sonhar falando no idioma que está aprendendo. Pelo visto, método de concentração profunda.
E num dia de 1849 a morte veio a Mezzofanti através de uma doença que lhe havia atingido o cérebro. No final da vida, das dezenas de idiomas que conhecia, Giuseppe já não falava quase mais nada a não ser “Romani”, idioma cigano, que estudou alguns anos antes da fatalidade. Tinha certa predileção por aquele idioma exótico, de bela sonoridade, falado por um povo misterioso de andarilhos sobre o qual fala-se de seus encantos e mistérios. E o notável poliglota Mezzofanti falou suas últimas palavras em romani, para espanto de quem o conheceu e surpreendeu-se com um homem que se tornou a personificação viva da Torre de Babel.
Fonte: Jardim de Epicuro
Há um longo caminho a percorrer.