Propriedade e Escassez.
Vamos voltar um passo e examinar desde o início a ideia dos direitos de propriedade. Libertários acreditam em direitos de propriedade
sobre bens tangíveis (recursos). Por quê? O que há de especial com bens tangíveis que os sujeita a serem passíveis de apropriação? Por que bens tangíveis constituem propriedade?
Um pouco de reflexão mostrará que é a escassez desses bens – o fato de que pode haver conflito quanto a esses bens por parte de múltiplos agentes humanos. A própria possibilidade de conflito quanto a um recurso o torna escasso, dando origem à necessidade de regras éticas para governar seu uso. Assim, a função social e ética fundamental dos direitos de propriedade é prevenir conflito interpessoal quanto a recursos escassos. Como nota Hoppe:
“Apenas porque existe escassez existe um problema de formular leis morais; apenas se os bens são superabundantes (bens “livres”), nenhum conflito quanto ao uso dos bens é possível e nenhuma coordenação de ação é necessária. Consequentemente, disso segue que qualquer ética, corretamente concebida, deve ser formulada como uma teoria da propriedade, ou seja, uma teoria da atribuição de direitos de controle exclusivo sobre meios escassos. Só assim se torna possível evitar conflitos até então inevitáveis e sem solução.”A natureza contém, então, coisas que são economicamente escassas. Meu uso de alguma coisa conflita com (exclui) seu uso dela, e vice versa. A função dos direitos de propriedade é prevenir conflito interpessoal quanto a recursos escassos, ao alocar posse exclusiva de recursos a indivíduos específicos (donos). Ao cumprir essa função, direitos de propriedade devem ser visíveis e justos. Claramente, para que os indivíduos evitem usar propriedade possuída por outros, limites e direitos de propriedade devem ser objetivos (intersubjetivamente definíveis): eles devem ser visíveis. Por essa razão, direitos de propriedade devem ser objetivos e não ambíguos. Em outras palavras, “boas cercas criam bons vizinhos”.
Direitos de propriedade devem ser demonstravelmente justos, bem como visíveis, porque eles não podem cumprir sua função de prevenir conflitos a menos que sejam aceitos como justos por aqueles afetados pelas regras. Se os direitos de propriedade são alocados de maneira injusta, ou simplesmente agarrados à força, é como se não houvesse direito algum; é novamente o poder contra a justiça, isto é, a situação anterior aos direitos de propriedade. Mas como os libertários reconhecem, seguindo Locke, é apenas o primeiro ocupante ou usuário de tal propriedade que pode ser seu dono natural. Apenas a regra do primeiro ocupante garante uma alocação ética e não arbitrária de propriedade sobre recursos escassos. Quando direitos de propriedade sobre meios escassos são alocados de acordo com a regra do primeiro ocupante, fronteiras de propriedade são visíveis, e a alocação é demonstravelmente justa. Conflito pode ser evitado com tais direitos de propriedade porque terceiros podem vê-los, e assim evitar as fronteiras, e serem motivados para fazê-lo porque a alocação é justa e clara.
Mas com certeza é claro que, dada a origem, a justificativa e a função dos direitos de propriedade, que eles são aplicáveis apenas
a bens escassos. Caso estivéssemos num Jardim do Éden onde a terra e outros bens fossem infinitamente abundantes, não haveria escassez, e, portanto,
nenhuma necessidade de direitos de propriedade; conceitos de propriedade não fariam sentido. A ideia de conflito, e a ideia de direitos, sequer surgiriam. Por exemplo, o fato de você pegar meu cortador de grama não acabaria me privando de um se eu pudesse encantar outro com um piscar de olhos. Pegar o cortador nessas circunstancias não seria “roubo”. Direitos de propriedade não são aplicáveis a coisas de abundância infinita, porque não há como haver conflito quanto a elas. Assim, direitos de propriedade devem possuir fronteiras objetivas, discerníveis, e devem ser alocadas de acordo com a regra do primeiro ocupante. Além disso, direitos de propriedade são aplicáveis apenas a recursos escassos. O problema com direitos sobre PI é
que os objetos ideais protegidos pelos direitos sobre PI não são escassos; e, além disso, tais direitos de propriedade não são, e nem podem ser, alocados de acordo com a regra do primeiro ocupante, como será visto abaixo.
Escassez e Ideias
Assim como o cortador de grama magicamente reproduzível, ideias não são escassas. Se eu inventar uma técnica para colher algodão, o fato de você colher algodão dessa forma não tira essa técnica de mim. Eu ainda possuo minha técnica (assim como meu algodão). Seu uso não exclui o meu; podemos ambos usar minha técnica para colher algodão. Não há escassez econômica, e nenhuma possibilidade de conflito quanto ao uso de um recurso escasso. Assim, não há necessidade de exclusividade.
Similarmente, se você copiar um livro que eu escrevi, eu ainda possuo o livro original (tangível), e eu ainda “tenho” o padrão de palavras que constitui o livro. Assim, trabalhos assinados não são escassos no mesmo sentido que uma faixa de terra ou um carro o são. Se você pegar meu carro, eu não o tenho mais. Mas se você “pegar” um padrão de livro e usá-lo para fazer seu próprio livro físico, eu ainda possuo minha própria cópia. O mesmo é válido para invenções e,
de fato, qualquer “padrão” ou informação que alguém gere ou possua. Como Thomas Jefferson – ele mesmo um inventor, bem como o primeiro Examinador de Patentes dos EUA – escreveu, “aquele que recebe uma ideia de mim recebe instrução sem diminuir a minha; da mesma forma aquele que acende sua vela perto de mim, recebe luz sem me escurecer”.62 Como o uso da ideia de outros não os priva da mesma, nenhum conflito quanto ao uso é possível; ideias, então, não são candidatas a possuírem direitos de propriedade. Mesmo Rand reconheceu que “propriedade intelectual não pode ser consumida”.
Ideias não são naturalmente escassas. Entretanto, ao reconhecer um direito sobre um objeto ideal, se cria escassez onde não existia antes. Como explica Arnold Plant: “É uma peculiaridade dos direitos de propriedade sobre patentes (e direitos autorais) que eles não apareçam da escassez dos objetos que são apropriados. Eles não são uma consequência da escassez. Eles são a criação deliberada de leis estatuárias, e, ao passo que em geral a instituição da propriedade privada colabora com a preservação dos bens escassos, tendendo... “a aproveitar o máximo deles”, direitos de propriedade sobre patentes e direitos autorais tornam possível a criação de uma escassez dos produtos apropriados que caso contrário não poderia ser mantida”.64
Bouckaert também argumenta que é a escassez natural o que dá origem à necessidade de regras de propriedade, e que leis de PI criam uma escassez artificial, injusta. Como ele nota: “Escassez natural é o que se segue da relação entre o homem e a natureza. A escassez é natural quando é possível concebê-la perante qualquer arranjo humano contratual, institucional. Escassez artificial, por outro lado, é o resultado de tais arranjos. Escassez artificial dificilmente pode servir como uma justificativa para o arcabouço legal que causa tal escassez. Tal argumento seria completamente circular. Pelo contrário, a escassez artificial em si precisa de uma justificativa.”65
Assim, Bouckaert mantém que “apenas entidades naturalmente escassas sobre as quais controle físico é possível são candidatas” a proteção por direitos de propriedade reais. 66 Para objetos ideais, a única proteção possível é aquela atingível através dos direitos pessoais, isto é, contrato (mais sobre isso na seção ‘PI Como Contrato’).67
Apenas recursos escassos, tangíveis, são objetos passíveis de conflito interpessoal, então é apenas a eles que as regras de propriedade são aplicáveis. Assim, patentes e direitos autorais são monopólios injustificáveis garantidos por legislação governamental. Não é de surpreender que, como nota Palmer, “privilégios monopolísticos e censura estão baseados na raiz histórica de patentes e direitos autorais”.68 É esse privilégio monopolístico que cria uma escassez artificial onde não havia antes.
Vamos relembrar que direitos sobre PI conferem aos criadores de padrões direitos parciais de controle - posse - sobre a propriedade tangível de todos os outros. O criador do padrão possui controle parcial da propriedade de terceiros, graças ao seu direito sobre PI, porque ele pode proibi-los de executar certas ações com sua própria propriedade. O autor X, por exemplo, pode proibir um terceiro, Y, de estampar certo padrão de palavras nas próprias páginas vazias de Y com a própria tinta de Y. Ou seja, ao meramente se responsabilizar por uma expressão original de ideias, ao meramente pensar e gravar um padrão original de informação, ao encontrar uma nova forma de usar sua própria propriedade (receita), o criador de PI instantaneamente, magicamente, se torna um dono parcial da propriedade de terceiros. Ele tem alguma voz sobre como terceiros podem dispor de sua propriedade. Direitos de PI mudam o status quo ao redistribuir propriedade de indivíduos
de uma classe (donos de propriedade tangível) para indivíduos de outra classe (autores e inventores). Prima facie, então, leis de PI transgridem ou “tomam” a propriedade de donos de propriedade tangível, ao transferir posse parcial para autores e inventores. É essa invasão e redistribuição de propriedade que deve ser justificada para que direitos sobre PI sejam válidos. Vemos, então, que defesas utilitaristas não são capazes de fornecer tal justificativa.
Fonte: http://rothbardbrasil.com/wp-content/uploads/arquivos/propriedade-intelectual.pdf