Vejo que as pessoas envolvidas nessa conversa estão cometendo um erro muito comum: Vocês estão confundindo meritocracia com justiça ou acreditando que as duas coisas vem acompanhadas. Acontece que um sistema meritocrático puro, onde cada pessoa tem exatamente e apenas o que merece, tecnicamente seria impossível. Afinal, uma criança merece os pais que tem? Ou as boas condições de vida que vem com eles? Uma criança merece passar fome porque seu pai não se "esforçou o bastante" e outra merece a empresa que ganhou do pai que foi o único a exercer esse esforço? Só por aí já é totalmente impossível. Além disso, como a meritocracia se baseia no esforço, ela esquece as condições naturais das pessoas, que por si só são diferentes. Por exemplo, uma pessoa com TDAH precisa fazer muito mais esforço que uma pessoa normal para conseguir boas notas na escola ou exercer seu trabalho corretamente. Uma pessoa com problemas nas pernas precisaria de um acesso a uma incrível tecnologia para ser capaz de competir numa corrida com uma pessoa normal, o que não depende apenas de seu esforço. Se pensar por esse lado, um sistema que funciona só e puramente com base no esforço e no merecimento de uma pessoa não pode existir na sociedade.
Porém, segundo o espiritismo, poderia ocorrer espiritualmente. Isso porque todos os seres nasceram simples e ignorantes e passaram por vários tipos de encarnações semelhantes, com as mesmas lições, para chegarem ao que são hoje. Então podemos dizer que, espiritualmente, o sistema meritocrático ocorre diariamente desde o início dos tempos. Porém, mesmo nesse sistema meritocrático, onde você tem acesso àquilo que você conquista, isso não significa que espíritos igualmente evoluídos vão viver da mesma forma, com tudo aquilo ao que têm direito. Isso porquê existem diferentes formas de se evoluir, e cada espírito tem a sua própria "estratégia de evolução". Um pode optar por ter uma encarnação como médico salvando várias vidas e descobrindo a cura para o câncer, enquanto outro pode escolher nascer cego, surdo e mudo e ter uma vida horrível em prol de "afogar" seus pecados à força e não precisar mais lidar com a culpa por algo horrível que fez numa vida anterior, ou mesmo porque as vidas mais duras são as que trazem mais aprendizados. Por isso, mesmo nesse sistema meritocrático você não pode dizer o nível de mérito de uma pessoa apenas pelo que ela tem, pois o livre-arbítrio "cancela" essa ideia óbvia de que duas pessoas com os mesmos direitos e oportunidades vão acabar tendo condições de vida semelhantes.
Portanto, essa meritocracia espiritual é um exemplo de "meritocracia justa", mas mesmo assim as noções de justiça não são iguais às nossas, pois podemos ver apenas uma parte do processo, além de sermos incapazes de lermos mentes para saber se uma pessoa está em tal situação inferior porque ela quer ou porque ela merece. Veja que curioso, vamos supor que estamos fazendo um experimento. Temos 5 crianças e dizemos para elas que, dependendo de suas notas em um certo teste, elas vão ter acesso a doces diferentes para terem como recompensa. Nisso, temos que uma criança fecha a prova, outra tira 8, outra 6, outra 4 e outra não acerta apenas uma. Vamos considerar que todas essas crianças foram criadas da mesma forma e tem o mesmo QI, assim como as mesmas experiências e tiveram, antes da prova, o mesmo acesso a materiais de estudo, para que tenhamos certeza de que todas tiveram exatamente as notas que mereciam. Assim, a criança que fechou a prova teve acesso ao doce mais delicioso, uma torna de limão. Mas ela não gosta de limão e seu doce favorito é o bombom de brigadeiro, que foi recebido pela criança que tirou 6. Já a criança que acertou uma questão teve acesso a uma bala de maçã verde, o doce mais fraco, mas acontece que é o doce favorito da criança. Para sermos justos, vamos então dar à criança que tirou total o direito de escolher seu doce favorito e vamos dar à criança que acertou apenas uma questão o doce que ela menos gosta. Agora, a criança que recebeu 8 tem outro problema, porque ela recebeu um bolo com nozes, e ela é alérgica, e a criança que tirou 4 recebeu um pequeno pote de sorvete de creme, mas ela sequer gosta de doces, então nenhum dos prêmios a atrai. A criança que tirou 6 realmente adora bombom de brigadeiro, mesmo não sendo seu favorito, então deveria ser uma vitória justa, mas ironicamente ela acabou com o mesmo prêmio da pessoa em primeiro lugar. Podemos chamar isso de meritocracia?
Viram como a coisa é complexa? A meritocracia é termo que supõe um regime muito complexo como se fosse algo simples. As pessoas são muito diferentes para que possam viver uma vida justa de acordo com seu mérito. Justiça e meritocracia, inesperadamente para muitos, são termos que não combinam. A justiça só existe com a igualdade, mas a meritocracia causa uma desigualdade. Muitos negam essa realidade pois, quando pensam em justiça como igualdade pensam que o bandido vai ter as mesmas oportunidades que uma pessoa boa e consideram injusto, mas não dar a ele as mesmas oportunidades significa que mesmo que ele queira mudar e esteja disposto a se esforçar ele não vai ser capaz de ter uma vida compatível a alguém que se esforça igualmente, o que significa que não das as mesmas oportunidades a um bandido acaba indo contra o que seria a meritocracia, que vocês acreditam ser a verdadeira justiça. Mais uma vez, tentam simplificar um conceito infinitamente complexo.
Por isso, eu não acredito no termo "meritocracia" pois acho que ela é diferente do que diz seu conceito.
PS: Eu não estou aqui discutindo se a meritocracia é boa ou ruim, nem se a justiça é positiva ou negativa. Eu estou apenas expressando a minha ideia de que a meritocracia não funciona da forma como tecnicamente deveria, assim como a justiça.