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Introdução
A Ética Libertária é o tema mais fundamental quando falamos em libertarianismo. Afinal, Libertarianismo é uma doutrina filosófica a qual compreende as ideias de que não é legítimo iniciar agressão contra não agressores, sendo que agressão é definida como violação de propriedade privada. Essas ideias são justificadas através do método único de justificação, que é a argumentação, e podem ser reconhecidas como verdades dadas a priori. A Ética Libertária estabelece o direito de propriedade privada de cada indivíduo, e essa Ética deve ser seguida por todo indivíduo que justifica as suas ações de maneira racional, visto que é impossível justificar uma ação que viole o direito de propriedade privada sem que se caia em contradição performativa.
Este artigo tem a intenção de prover uma explicação simples e de fácil acesso a justificação dessa Ética e os seus corolários. Ele é dividido em três partes principais: por que existem conflitos e o que eles são; as características epistemológicas da argumentação; a justificação da Ética Libertária. Além dessas partes, existe posteriormente um maior aprofundamento filosófico sobre questões mais complexas da justificação e da Ética. Por fim, todas as críticas que são enviadas para mim, contra o artigo, são respondidas no final dele, e essas críticas podem ir aumentando com o tempo.
Eu espero que esse artigo seja usado sempre que for conveniente para fortalecer e proliferar o movimento libertário, principalmente nesse momento crucial quando temos que enfrentar oposições internas e externas. Internamente, o movimento está repleto de falsos libertários; externamente, muitas pessoas pelo mundo todo estão infectadas pelo vírus do estatismo, de forma que o que é justo e o que é verdadeiro estão ofuscados pela relativização ética.
sapere aude
Parte um - A origem dos conflitos
Todo e qualquer conflito tem origem no fato de que vivemos em um mundo de escassez. O conflito é uma impossibilidade praxeológica entre dois indivíduos ou mais que tentam utilizar um recurso escasso para fins excludentes simultaneamente
O nosso corpo é um recurso escasso. É um recurso porque, segundo o axioma da ação humana, ele é o meio primário ao qual o indivíduo recorre para atingir um fim, através da realização efetiva da ação. E é escasso porque, segundo o mesmo axioma, eu não poderia atingir dois fins excludentes ao mesmo tempo com este mesmo recurso. Eu não poderia, por exemplo, levantar e abaixar o meu braço esquerdo ao mesmo tempo, existe um limite físico: mesmo que a intenção da minha ação seja alcançar esse fim, eu seria frustrado por não conseguir realizá-lo.
Todos os outros recursos também são escassos, isto é: não podemos realizar fins excludentes com o mesmo recurso no mesmo instante de tempo . Se algum recurso não fosse escasso, então eu poderia realizar todos os fins que eu desejo com esse mesmo recurso, e, por conseguinte, alcançaria um estado de satisfação plena e passaria a não agir, violando o axioma da ação humana. Então, para a Ética Libertária, é irrelevante o que é suficiente ou insuficiente, o que importa é o que é escasso e o que não é escasso. O ar no planeta pode ser suficiente, pode ser abundante, mas ainda assim, ele é escasso. Ideias não são escassas, por exemplo. Se eu te contar uma ideia, eu não a perderei, ela permanece comigo.
Disso, podemos concluir que todo e qualquer conflito se dá quando:
Um indivíduo resolve utilizar o corpo do outro para um fim que é excludente (incompatível) com o fim determinado pelo outro indivíduo para esse recurso escasso. Por exemplo: o indivíduo A segura o indivíduo B, que não quer ser segurado. Isso significa que o indivíduo A está utilizando o recurso escasso do indivíduo B, seu corpo, para atingir os seus próprios fins, excludentes em relação aos fins de B. Isso gera um conflito porque o indivíduo B já está utilizando esse recurso escasso, seu próprio corpo, para fins excludentes em relação aos fins de A.
Dois indivíduos resolvem utilizar o mesmo recurso escasso ao mesmo tempo para fins excludentes. Por exemplo: o indivíduo A colhe uma maçã para comer, e o indivíduo B pega a maçã do indivíduo A, também para comer. Como a maçã é escassa, surgiu um conflito nesse processo: ambos querem utilizar a mesma maçã para seus fins excludentes.
Se todos os conflitos emanam do fato de dois, ou mais, indivíduos tentarem utilizar um mesmo recurso escasso ao mesmo tempo para fins excludentes (considerando o corpo humano como um recurso escasso), então, se quisermos conhecer uma regra, uma ética, que devemos seguir para evitar tais conflitos, essa ética deve ser uma norma de propriedade, um direito de controle exclusivo sobre os recursos escassos, isto é, qual indivíduo possui direito de controle exclusivo sobre o recurso X
Parte dois - A argumentação
Algumas características da natureza e do status epistemológico da argumentação:
A argumentação é necessariamente uma ação humana, e, portanto, pressupõe a utilização do nosso corpo, um recurso escasso, como meio.
A argumentação é uma rara sub-classe de ação, e, mais especificamente, de ações de comunicação, motivada por uma razão única e destinada a um propósito único.
A argumentação surge de um desacordo ou conflito interpessoal em relação ao valor verdade de uma proposição ou argumento e visa a dissolução ou resolução desse desacordo ou conflito por meio da argumentação como o método único de justificação.
A argumentação é uma atividade específica de busca pela verdade, a busca por justificar a validade das proposições. Como tal, os indivíduos que argumentam buscam o concílio, isto é, concordam ao menos que discordam.
Assim, a argumentação é uma ação livre de conflitos, uma interação que busca a concordância entre os indivíduos argumentadores a respeito do valor verdade de uma proposição ou argumento.
Um indivíduo precisa reconhecer o outro indivíduo como um ente exterior à si, que possui autonomia sobre as suas ações e sobre os recursos que necessita para propor as suas proposições, tornando possível que ele convença ou seja convencido através dos argumentos.
O que faz a argumentação, uma forma específica de busca pela verdade, ser possível, é o reconhecimento de que cada indivíduo deve ter o direito de controle exclusivo sobre o seu corpo, podendo então agir de maneira autônoma em relação aos outros indivíduos para expressar os seus argumentos e chegar à uma conclusão por si só.
Desses fatos, podemos concluir que a argumentação possui uma condição formal a priori que é o reconhecimento, pelos indivíduos argumentadores, do direito de controle exclusivo sobre os próprios corpos.
A argumentação possui uma fundação normativa, e essa fundação normativa é o reconhecimento do direito de autopropriedade.
Portanto, está implícito no processo argumentativo o reconhecimento do direito de autopropriedade, uma condição formal a priori da argumentação, e que, portanto, é transcendental: sem esse reconhecimento, a argumentação não se dá.
Todas as dez proposições dadas acima não podem ser negadas sem que aconteça uma contradição performativa, logo, podem ser reconhecidas como verdades dadas a priori, válidas, transcendentais.
Uma contradição performativa acontece quando o conteúdo de uma proposição contradiz alguma pressuposição do ato de propor essa proposição.
Parte 3 - A Justificativa da Ética
A Ética possui como objetivo precípuo ser uma regra que, se for seguida, evita conflitos entre indivíduos. Se a Ética for seguida por todos os indivíduos, os indivíduos nunca podem entrar em conflito. Isto é, não podem existir contradições internas quando a ética é aplicada indefinidamente. Se a Ética gerar um conflito interno, ela não será considerada Ética, por definição.
A Ética é normativa, isto é, ela diz o que deve ser feito, e, no caso da Ética Argumentativa, mais especificamente, o que não deve ser feito.
“O dever é a necessidade de uma ação por respeito à lei.” - Kant
Isso implica no fato de que a Ética pode ser violada, indivíduos podem escolher não seguir a Ética. Se ela fosse descritiva, seria como a Lei da Gravidade: impossível de ser quebrada. Ninguém consegue sair por aí voando se escolher fazer isso, mas uma pessoa que escolhe agredir a outra pode conseguir atingir o seu fim.
Já vimos que a Ética é normativa, e, normas, em geral, precisam respeitar o princípio da universalização para serem justificadas como princípios éticos: apenas normas que podem ser universalizadas, isto é, formuladas como princípios gerais que sem exceção são válidos para todos os indivíduos podem ser justificadas.
Sabemos que se quisermos justificar uma Ética, ela deve estabelecer uma ligação entre indivíduos e recursos escassos, um direito de controle exclusivo, uma norma de propriedade, para que os indivíduos que sigam a ética nunca entrem em conflito. Esse é o esquema de proposições descritivas que justificam racionalmente a Ética Argumentativa:
Todas as tentativas de afirmar que uma proposição é verdadeira, falsa, indeterminada, ou se um argumento é válido ou não, ocorrem e são justificadas no curso de uma argumentação. Essa proposição não pode ser tomada como falsa sem cair em uma contradição, porque a tentativa de refutá-la se daria justamente através da argumentação. (proposição descritiva verdadeira e a priori)
Para justificar alguma proposição, é necessária a argumentação. Disso, podemos concluir que toda e qualquer tentativa de justificar uma Ética é, necessariamente, através da argumentação. (proposição descritiva verdadeira e a priori)
Na argumentação está implícito, como condição formal a priori, o reconhecimento do direito de autopropriedade. (proposição descritiva verdadeira e a priori)
Se uma pessoa argumentasse contra o direito de autopropriedade, ela cairia em contradição performativa, visto que no ato de argumentar ela já demonstra reconhecer esse direito. (proposição descritiva verdadeira e a priori)
Logo, a única Ética que pode ser justificada racionalmente é a Ética Libertária, da propriedade privada. As outras Éticas podem ser propostas, mas o indivíduo que as propõe cai em contradição performativa. (proposição descritiva verdadeira e a priori)
6. Temos, então, que a Ética Argumentativa é a pressuposição praxeológica da argumentação. (proposição descritiva verdadeira e a priori)
A justificativa da Ética Libertária é composta apenas por termos descritivos verdadeiros e a priori, e, portanto, pode ser derivada e conhecida a partir da razão. Como sabemos que questões do que é justo, válido, certo, surgem apenas no curso de uma argumentação, e a argumentação é uma ação humana, então a Ética aqui defendida está circunscrita à praxeologia, e, portanto, só se aplica à classe de seres que possuem como atributo ontológico a capacidade argumentativa. Além disso, percebemos que a Ética Libertária é a norma de autopropriedade e todos os seus corolários. Toda e qualquer outra norma deve ser derivada e respeitar essa norma primeira, visto que, caso contrário, o indivíduo que tentasse justificar a norma proposta cairia em contradição.
Parte Extra
Como recursos escassos podem passar a ser de propriedade privada de um indivíduo?
Com o objetivo único de evitar conflitos, apenas uma solução para a apropriação de recursos escassos é possível. Ela se dá através da ação. Somente através da ação, em um momento particular de espaço e tempo, um link objetivo intersubjetivamente determinável entre um indivíduo e um recurso escasso (com a sua própria extensão e limites, bordas) pode ser estabelecido. O link objetivo que é fundado pela apropriação originária é um link objetivo indireto, porque ele pressupõe que uma pessoa aja para apropriar o recurso escasso, e, portanto, pressupõe que ela já possua os seus meios primários de ação, o seu corpo, para apropriar os recursos escassos externos.
Além disso, nem todas as ações de um indivíduo que toma recursos escassos para sua posse podem ser justificadas. Apenas a ação apropriadora do primeiro usuário que apropria o recurso que não foi apropriado anteriormente pode ser feita de forma pacífica e sem conflito, e, portanto, justificada argumentativamente. Isso não pode ser negado sem que se caia em contradição performativa, porque argumentar que a propriedade é de um próximo apropriador sem que o primeiro tenha consentido ou aceito geraria conflitos intermináveis, o que é contrário ao propósito da argumentação.
Dessa forma, temos que o princípio da apropriação originária (do primeiro usuário) é uma verdade que pode ser reconhecida como válida puramente a priori.
Como eu sou o proprietário do meu corpo?
A questão de qual bem foi legitimamente apropriado por qual pessoa é contingente e empírica, e é possível colocar em dúvida se um bem é de propriedade legítima de uma pessoa. Todavia, na questão de se o corpo (meio da ação humana primário) de uma pessoa é de sua propriedade, isso não é possível. Nenhuma pessoa consegue argumentar consistentemente que é proprietária do corpo de outra pessoa, porque isso seria uma contradição performativa. Então, é reconhecido e reconhecível como uma verdade a priori que cada pessoa é legitimamente a proprietária do seu corpo, com o qual naturalmente nasceu e do qual se apropriou (tornou-se proprietária) através de um link objetivo direto, antes que qualquer outra pessoa pudesse fazê-lo indiretamente através do princípio da apropriação originária.
A questão que surge, e que pode confundir muita gente, é a seguinte: Como isso pode ser possível? Estamos tratando de duas entidades distintas? Na verdade não. Para esclarecer isso, vamos desmembrar o que significa um indivíduo possuir o direito de autopropriedade.
Sabemos que o direito de autopropriedade é o mesmo que direito de controle exclusivo sobre o próprio corpo. Além disso, podemos analisar o controle exclusivo da seguinte forma: o indivíduo possui intenção de alcançar fins que ele determina, utilizando, para isso, meios (recursos escassos) que ele escolhe. No caso do direito de controle exclusivo do corpo, o indivíduo possui o direito de determinar os fins que ele almeja alcançar com a ajuda do meio que é o seu corpo, desde que isso não viole o mesmo direito que outros indivíduos também possuem. Portanto, podemos perceber que, no fim das contas, o que significa é que os outros indivíduos possuem o dever de não interferir nos fins que um indivíduo determina alcançar, utilizando o meio escasso, seu corpo, para isso.
Assim, o indivíduo não é o primeiro usuário do seu corpo, como se o seu corpo em algum momento fosse uma coisa esperando por um ocupante, mas ele é o primeiro e único indivíduo capaz de determinar diretamente fins para o seu próprio corpo. O link objetivo indireto oriundo do princípio da apropriação originária, que exsurge da ação humana sobre recursos escassos não apropriados (e outras condições), não existe no caso do indivíduo e seu corpo, mas sim um link objetivo direto, que já foi elucidado acima, sendo que este último possui preferência lógica sobre o anterior.
Com esse termo completamente esclarecido, fica fácil perceber porque essa é uma condição necessária para a possibilidade da atividade argumentativa, já que um indivíduo só pode reconhecer a validade de proposições de forma autônoma tendo o seu direito de autopropriedade respeitado.
Conclusão
Concluo que a Ética Libertária é a Ética da Propriedade Privada, ou Ética Argumentativa, e que ela é irrefutavelmente justificada. Se todos os indivíduos seguirem essa ética, sabemos que nunca acontecerá um conflito, e que toda e qualquer iniciativa é livre, privada e voluntária. Uma consequência disso seria uma sociedade anarcocapitalista. Essa sociedade seria o ápice do que temos de melhor: a nossa racionalidade, e a sua manifestação aplicada à sociedade de forma soberana.
Respondendo críticas
A crítica de que o direito de propriedade não foi justificado pois suas premissas não foram justificadas, ou que ele é justificado por um argumento circular.
Bem, é verdadeiro que argumentos dedutivos dependem da justificação de suas premissas para serem válidos, isto é: a validade do argumento depende da validade das suas premissas. Isso é verdadeiro e nunca foi dito o contrário. No entanto, esse contra-argumento claramente não é válido contra a Ética Argumentativa porque o argumento não é um argumento dedutivo, e sim um argumento transcendental. Parafraseando Kant, “denomino transcendental todo conhecimento que de modo geral se ocupa da maneira que temos de conhecer os objetos, tanto quanto possível, a priori.” Isto é, o argumento é transcendental ao passo que mesmo aquele indivíduo que procura negar o argumento precisa aceitá-lo como válido e verdadeiro, e elede fato o faz, simplesmente por negar o argumento. Veja, é possível que o indivíduo negue que humanos agem, e isso não seria uma contradição lógica. Contudo, ao afirmar essa proposição, ele cairia em uma contradição performativa, o que mostra que o seu argumento é inválido definitivamente. Portanto, temos que a norma de autopropriedade é uma verdade a priori, válida e transcendental.
A crítica de que a Ética Argumentativa só é válida durante a argumentação
A argumentação não é uma atividade que torna proposições verdadeiras ou falsas. Ela é o método ao qual os indivíduos recorrem para justificar que uma proposição é válida ou falsa. Isto é, a existência e a validade do direito de autopropriedade não depende de alguém estar argumentando, mas eles são justificados através da argumentação. Afirmar que a validade desse direito depende do momento da argumentação seria como afirmar que 1+1=2 não é verdadeiro o tempo inteiro, mas apenas quando alguém realiza o cálculo. Além disso, quando o indivíduo afirma a proposição “A Ética Argumentativa só é válida durante a argumentação” ele entra em contradição, visto que ele afirma que o que ele diz sobre a argumentação é válido dentro e fora de uma argumentação.
A crítica de que o indivíduo apenas tem propriedade sobre partes do corpo
Essa crítica se baseia no seguinte argumento: “Não é necessário utilizar o corpo inteiro, por exemplo, as pernas, para realizar a atividade argumentativa.”. Dito isso, percebemos que esse argumento apresenta um problema de categorias. Existe uma confusão entre a fisiologia da argumentação e a lógica da argumentação ( e da ação ). A distinção que damos entre o corpo do indivíduo e o mundo exterior é baseada na praxeologia, uma das bases da Ética Argumentativa. Afirmar que certas partes do corpo do outro indivíduo não são de sua propriedade é afirmar que não existe reconhecimento da autonomia do outro indivíduo como um ente exterior, que possui bordas separadas, fisicamente reconhecíveis, de mim, e, portanto, como uma unidade que realiza decisões, e isso caracteriza uma contradição performativa, já que é necessário esse reconhecimento para realizar a atividade argumentativa de propor tal proposição.
A crítica de que a Ética Argumentativa cai na Guilhotina de Hume
A Guilhotina de Hume é, resumidamente, uma regra lógica que diz que de fatos não podemos derivar normas. Isto é, pelo fato de alguma coisa ser, eu não posso concluir que alguma coisa deveria ser
. Mais precisamente, de proposições descritivas (ser) não podemos derivar proposições normativas (dever-ser). Essa regra, apesar de ser válida, não refuta a Ética Argumentativa simplesmente porque ela não tem onde ser aplicada nesse caso. Não há derivação de uma norma em nenhum momento. Não partimos de proposições descritivas e concluímos uma proposição normativa. O que realmente acontece é que é reconhecível e reconhecemos que existe uma norma como parte dascondições formais constitutivas de uma dada atividade, que é a argumentação. Essa norma não é derivada de alguma outra, ou de algum fato. Ela é transcendental e reconhecida puramente a priori porque a pessoa que tentar negar a sua validade demonstra reconhecer tal norma como válida nesse mesmo ato.
A crítica de que é possível argumentar e agredir ao mesmo tempo
Primeiro, é necessário entender que não é possível que um indivíduo realize duas ações humanas ao mesmo tempo. Necessariamente, as ações individuais sucedem-se umas às outras, e portanto, nunca são síncronas. Isso pode ser percebido pelo fato de que existe uma escala de valores, que é uma ferramenta lógica, que só se manifesta na ação real; só pode ser percebida a partir da observação da ação real. Sendo assim, não é possível compará-la com a ação real ou usá-la como critério para avaliação das causas das efetivas ações realizadas pelo homem. Como as ações não são síncronas, se numa ação A é preferido a B e, em outra, B a C, por menor que seja o intervalo de tempo entre as duas ações, não se pode construir uma escala de valores uniforme na qual A precede B e B precede C. Também não se pode considerar uma posterior terceira ação como coincidente com as duas anteriores. Esse exemplo serve para provar que julgamentos de valor não são imutáveis e que, portanto, uma escala de valores que se abstrai do fato de que as várias ações de um indivíduo não são sincrônicas pode resultar contraditória em si mesma.
Dito isso, é possível que o indivíduo realize a ação argumentativa enquanto realiza alguma outra coisa ao mesmo tempo, o que caracteriza uma ação de vários propósitos, o que é possível, e que vamos analisar agora.
É verdade que o telos da argumentação representa a causa final que é encontrar o reconhecimento dos indivíduos da verdade das proposições, momento no qual concordam com o valor verdade a respeito delas. No entanto, não se deve confundir esse fim com o que é a argumentação em si. A argumentação não é um fim e sim um meio. Ela é o meio, um método, ao qual os indivíduos recorrem para justificar proposições, ou seja, uma busca pela verdade de maneira pacífica. Não é porque os indivíduos argumentadores não alcançaram o fim ideal, a verdade, que isso represente um conflito. Não é possível que a argumentação alcance um conflito, visto que, no pior caso, ambos os indivíduos argumentadores respeitam a conclusão de que concordam que discordam um do outro. Essa foi a atividade de busca pela verdade atingida nesse exemplo de argumentação. Essa é a condição primacial da atividade argumentativa, o respeito e o reconhecimento da autonomia dos indivíduos, para que cada um possa de maneira plena propor as suas proposições. Novamente, não é porque a causa final, o telos, encontrar e reconhecer a verdade, não foi atingida que isso significa um acidente da atividade, muito menos que isso signifique um conflito entre os indivíduos. Pelo contrário, isso já estava previsto como uma possível resolução da atividade: ou os indivíduos concordam que chegaram em conclusões que ambos reconhecem como verdadeiras, ou os indivíduos concordam que chegaram em conclusões que um considera verdadeiras e o outro como falsas.
Sim, a argumentação tem como telos a resolução última do conflito formal (isso ocorre quando ambos indivíduos reconhecem a veracidade das proposições) e que a atividade em si é composta de uma troca proposicional em busca de remover falhas, isto é, um mostrar os erros da proposição do outro, mas isso em nada muda o fato da atividade ser livre de conflitos, visto que:
Quando os indivíduos se engajam numa argumentação, é justamente porque ambos demonstram preferência por expor suas proposições para que possam ser convencidos ou para que possam convencer o outro indivíduo através dessas proposições, de forma pacífica, e isso de forma alguma representa um conflito, e sim a busca coletiva pela verdade.
Durante todo o processo argumentativo, até que atinja o seu fim, os indivíduos discordam um da proposição do outro, mas isso de forma alguma representa um conflito, visto que isso pertence ao conjunto de objetivos formais da argumentação, que é justamente a tentativa de convencer ou ser convencido pelas proposições expostas ou recebidas. Em outras palavras, os indivíduos estão concordando que ainda discordam um das proposições do outro.
Ao fim da atividade argumentativa, também não é possível que exista conflito, visto que é possível ocorrer duas coisas. Ou os indivíduos agora concordam com as proposições um do outro, ou os indivíduos concordam que discordam das proposições um do outro. Isso de forma alguma representa um conflito.
Demonstrado que não é possível existir conflitos no início, meio e fim da atividade argumentativa, é provado que ela representa uma atividade livre de conflitos.
A argumentação é uma ação humana, e toda a ação humana pressupõe a existência do corpo do indivíduo, um recurso escasso. Sem que eu respeite o direito de controle exclusivo do indivíduo sobre o seu corpo, eu estou demonstrando que eu não reconheço a autonomia que ele possui sobre si, não reconheço ele como um ente exterior que pode se engajar na atividade argumentativa e expor as suas proposições, visto que eu não estou reconhecendo que ele tenha o direito de usufruir do seu corpo com a intencionalidade determinada por ele, violando assim a possibilidade da ação humana argumentativa, já que ela requer, necessariamente, a plenitude da utilização dos meios argumentativos. Isto é, durante a argumentação, se eu utilizar o corpo do outro indivíduo com a intenção que eu desejar, eu estou demonstrando que eu não desejo mais argumentar, que eu não estou mais reconhecendo a autonomia do indivíduo e da sua ação de propor proposições, e, portanto, finda-se assim a atividade, visto que ela não é possível sem tal reconhecimento. No entanto, cabe aqui observar que o conflito ocorrido não está dentro da atividade argumentativa. Ele, na verdade, pôs fim à essa atividade.
Eu demonstrei que não é possível que ocorra conflitos durante a atividade argumentativa, porque isso significaria um desvio da atividade em si, e não do telos dela, e, portanto, o reconhecimento do direito à autopropriedade continua sendo uma condição formal constitutiva para engajar-se na atividade argumentativa.
A crítica da Contradição Transcendental
A suposta contradição transcendental inicia levando em conta que a Ética Libertária se propõe a ser uma Ética absoluta, objetiva e atemporal. Além disso, leva-se em conta que a Ética Libertária defende a apropriação originária lockeana. Isso é plenamente verdade e eu não vou explicar cada um dos termos aqui, já que eles já foram explicados no início deste artigo.
A contradição seria o fato de que vivemos em um mundo onde, desde o início dos tempos, inúmeros atos ilegítimos foram realizados, isto é, inúmeras violações de propriedades aconteceram, caracterizando “contaminações” nas propriedades adquiridas pelos indivíduos, e que, portanto, não teríamos como saber quais propriedades são legitimamente de quem nos dias de hoje. “Há como restituir as pessoas que sofreram as violações de propriedade?”, “Há como rastrear à quem pertence a determinada propriedade legitimamente?”, são as perguntas que norteiam a contradição transcendental.
Mais do que isso, sabemos que uma norma pressupõe possibilidade, e uma norma não pode ser válida caso fosse provado que a sua plenitude não pode ser realizada. A minha resposta, dada a seguir, sobre essa crítica, é estritamente contra os argumentos que eu coloquei acima, e não é uma resposta direta à nenhum artigo ou pessoa. Não existem propriedades ilegítimas.
Não existem apropriações ilegítimas. Um indivíduo não consegue apropriar originalmente um bem de forma ilegítima. O link objetivo que é estabelecido por uma apropriação só pode passar a existir a partir do processo da apropriação lockeana. Por exemplo, é comumente falado que o território do Estado é de sua propriedade ilegitima, mas isso é apenas senso comum. O Estado sequer apropriou o território, ele apenas decretou. O link objetivo não existe. Dito isso, podemos perceber que na verdade existem sim propriedades legítimas hoje em dia, já que existem espaços de terras que, antigamente, foram apropriados por indivíduos que, antes de nenhum outro, misturaram seu trabalho à terra, e essa propriedade foi herdada geração após geração. São poucos casos? Sim. Mas existem.
Agora, vamos analisar o caso mais comum, provavelmente 99% das “propriedades” que existem hoje. A partir de uma apropriação legítima que ocorreu em um determinado tempo da história, algum outro indivíduo se apossou dessa “propriedade”, talvez por força bruta, talvez comprando com um dinheiro que é contaminado por agressões que o tornam ilegitimo. É verdade que agora esse indivíduo possui uma propriedade ilegitima? Não. Esse indivíduo não possui a propriedade. A propriedade continua pertencendo ao primeiro usuário, e esse link objetivo entre o indivíduo apropriador e o recurso escasso só vai deixar de existir no momento que esse indivíduo realizar uma troca voluntária legítima (que não seja fraude), ou deixar de existir. Se o indivíduo morrer, aquele que se apossou, provavelmente, vai acabar apropriando legitimamente o recurso escasso já que ele voltou a ser apropriável.
Dessa forma, podemos perceber que se as violações de propriedade forem sendo gradativamente diminuídas, as ditas “propriedades ilegitimas” vão sendo, ao passar do tempo, transformadas em propriedades privadas legítimas. Isso pode demorar um bom tempo, mas não tem como garantir a impossibilidade de que isso aconteça. Nesse ponto, a contradição transcendental falha.
“Como restituir as agressões que foram cometidas ao longo da história?” Aqui confunde-se o papel da Ética. A Ética não se encarrega da certeza de que aconteça uma restituição. A Ética apenas nos serve como a linha guia racional das ações que não devemos realizar. Apenas isso. Uma consequência dela é a possibilidade de um indivíduo que foi agredido requerer uma restituição. Novamente, o indivíduo possui a possibilidade jurídica de requerer uma restituição, mas nada garante que ele exerça tal direito. Dessa forma, o problema de restituir as agressões cometidas sequer encosta na Ética, porque ela sequer se preocupa com isso.
Sabemos que apenas um contra-exemplo, não importa o quão improvável, desde que factível, é suficiente para refutar o argumento. Pensemos no seguinte exemplo: todas as pessoas voluntariamente abdicam de todos os recursos que possuem , porque não sabem se eles são recursos que elas possuem propriedade legítima. Dessa forma, todos os bens individuais são enviados para o espaço. Além disso, todos os estados deixam de existir, e, portanto, a agressão sistemática também. A partir de agora, as pessoas apropriam os territórios que certamente não possuem proprietários legítimos vivos, por exemplo, territórios estatais que possuem um longo tempo de vida. Dessa forma, todas as contaminações de agressões e legitimidade foram eliminadas da sociedade atual e finalmente podemos perceber que a norma de autopropriedade pode ser (possibilidade de ser) seguida em sua plenitude, porque nenhum dos indivíduos irá violar a propriedade dos demais nesse exemplo.
“And that is that. The ethics of argumentation stands unimpaired.” - HHH