Supremo rasga Estado Laico ao permitir ensino de dogmas religiosos nas escolas públicas :
Descanse em paz, laicidade estatal. No dia 27.09.2017, o Supremo Tribunal Federal terminou o julgamento que analisava a questão do ensino religioso nas escolas públicas (ADI 4439). Por 6×5, com voto de minerva da Presidente, Ministra Cármen Lúcia, o STF afirmou que o art. 210, §1º, da Constituição deve ser interpretado como permitindo o ensino religioso confessional nas escolas públicas, de forma facultativa. A discussão surgiu porque referido dispositivo constitucional estabelece que o ensino religioso facultativo deve constar da grade curricular das escolas públicas e porque o Brasil firmou tratado internacional com o Vaticano, no qual se comprometeu a difundir o ensino religioso no país.
A maioria rejeitou a tese do Ministro Roberto Barroso, que, corretamente, aduziu que a norma constitucional da laicidade do Estado resta excepcionada pela norma igualmente constitucional do ensino religioso nas escolas públicas e, por isso, esta última deve ser interpretada restritivamente (como toda exceção a regime jurídico geral), de sorte a se ensinar História das Religiões, de maneira neutra, ou seja, expondo todas as principais doutrinas religiosas, em seus prós e contras, com definição de conteúdo programático pelo MEC. Perfeita aplicação do princípio da neutralidade axiológica do Estado frente às religiões, fundamento liberal da laicidade estatal, que veda relações de aliança ou dependência do Estado com quaisquer religiões (art. 19, I, da CF/88).
Prevaleceu, todavia, a tese do voto dissidente do Ministro Alexandre de Moraes, pela qual resta autorizado o ensino confessional religioso nas escolas, por integrantes das próprias instituições religiosas. Sem referendo ou rechaço da maioria, o Ministro Moraes defendeu a impossibilidade de definição de conteúdo programático pelo MEC [aparentemente, com soberania dos padres/pastores etc sobre o tema].
Sem propriamente negar o dever de neutralidade do Estado frente às religiões, a maioria parece ter firmado o entendimento de que o ensino religioso confessional seria constitucionalmente válido desde que feito de forma pluralista, abarcando a religião de todos os alunos que manifestem interesse no ensino religioso facultativo. A única exceção parece ter sido o Ministro Lewandowski, cujo voto, assustador nesse ponto, prega que o Estado poderia disponibilizar o ensino facultativo apenas da religião da maioria da população (aparentemente considerando “tudo bem” o desprezo das religiões minoritárias, desconsiderando que a liberdade religiosa é um direito para proteger minorias religiosas contra arbitrariedades da maioria), mas esse entendimento restou vencido – e o Ministro cita precedentes internacionais que referendaram programas escolares que davam “maior destaque” (uma “participação maior”) ao conhecimento de uma crença sobre outras, algo bem distinto da promoção de uma única religião, como ele defendeu…
De qualquer forma, a maioria adotou a retórica do ensino confessional pluralista, não-discriminatório, e não a do ensino confessional apenas da crença da maioria da população (o que suporia o ensino apenas da religião católica – sequer das crenças evangélicas). Mas ensino pluralista de todas as religiões existentes? De todas as religiões do universo de alunos de cada sala? Essas questões não foram respondidas. Essa surpreende e decepcionante decisão da maioria do STF chocou a comunidade jurídica, como bem destaca matéria do Justificando, que traz pertinentes críticas de diversos juristas a ela.
Primeiramente, gostaria de saber em que mundo vive o Ministro Alexandre de Moraes, ao se indignar com a possibilidade de o MEC definir os tópicos a serem ministrados nas disciplinas de ensino religioso. Não sei como é a vida de um respeitado Professor da renomada Faculdade de Direito da USP, mas para os Professores em geral, reles mortais, o MEC de há muito define os tópicos que devem ser obrigatoriamente ministrados pelos Professores, em quaisquer graduações e disciplinas escolares. Só o ensino religioso confessional terá o privilégio de ser tratado de forma diferente?
Só para o ensino religioso seria “censura” (sic) a imposição do conteúdo programático mínimo que deve ser ministrado??? E cabe notar que essa definição de conteúdo programático mínimo a ser ministrado existe para proteger os alunos de escolas e universidades, para garantir que os Professores forneçam os ensinamentos necessários para uma boa formação, possibilitando aos alunos (e seus pais, nas escolas) cobrarem a coordenação dos cursos caso o Professor não esteja cumprindo com essas exigências curriculares mínimas.
Reitere-se: por que só o ensino religioso confessional teria privilégio frente às demais disciplinas, ficando sob a soberania de padres, pastores etc para definirem, por seu puro arbítrio, aquilo que consideram relevante ensinar a seus alunos? E o Ministro aparenta desejar tal privilégio, ao insistir em dizer que o ensino religioso não se confundiria com qualquer outra matéria ao defender que o ensino religioso público ensine “dogmas de fé”…
Como se vê, religiosos, que tanto injustamente acusam o Movimento LGBTI de querer “privilégios” na sua busca por igualdade de direitos e respeito às suas individualidades (direito à diferença), são os que, na prática, são os privilegiados do mundo real…
Por outro lado, é chocante um Ministro de Suprema Corte invocar o profundamente absurdo argumento ad terrorem de que talvez um dia o STF tenha que decidir se o Cristo Redentor terá ou não que ser derrubado, como feito pelo Ministro Gilmar Mendes, ironizando os votos minoritários e a PGR. A uma, o Cristo Redentor configura patrimônio histórico-cultural do povo brasileiro, uma das Sete Maravilhas do Mundo que, como tal, merece um tratamento jurídico diferenciado. Simplesmente indefensável a (falsa) “analogia” claramente insinuada pelo Ministro, como se concluir que o ensino religioso constitucionalmente válido tivesse que ser o de História das Religiões gerasse, necessariamente, a conclusão no sentido da derrubada do Cristo Redentor…
Por outro lado, e respondendo a provocação do Ministro com outra: por acaso considera “coerente” com a laicidade estatal que Prefeitos entreguem a “chave da cidade” a Jesus Cristo, como recentemente ocorreu? Determinar a leitura da Bíblia em Legislativos municipais, estaduais e federal? Que espécie de pseudo “laicidade” é esta que permite um Estado promover determinada crença religiosa? São problemas concretos que ocorrem país afora – e eventual decisão futura do STF, pela inconstitucionalidade de construção de novas construções de louvor religioso pelo Poder Público (clara violação da laicidade estatal) poderia ter apenas efeito ex nunc (para o futuro), sem determinar a demolição de obras públicas feitas à revelia da laicidade estatal (princípio da segurança jurídica e subprincípio da confiança legítima, teoria do fato consumado[1] etc).
Além disso, a invocação da expressão “sob a proteção de Deus”, do preâmbulo constitucional, pelos Ministros Moraes e Mendes, a uma, ignora a decisão do STF na ADI 2076, que decidiu que o preâmbulo não tem valor jurídico. Ainda que se discorde disso (e adoto a corrente que vê eficácia interpretativa ao preâmbulo), ele precisa ser compatibilizado com as demais normas constitucionais, como a consagradora da laicidade estatal, sem ser interpretado isoladamente. Sendo que cabe sempre lembrar a espirituosa fala do Ministro Sepúlveda Pertence no citado julgamento, pela qual a pretensiosa invocação da proteção divina no preâmbulo não configura norma jurídica, já que não se pode compelir a divindade a cumprir a promessa supostamente feita. Impossibilidade jurídica por impossibilidade fática, sempre pontuo.
Improcedente, ainda, o argumento de que a laicidade estaria resguardada pelo caráter facultativo do ensino religioso, podendo os alunos dele não participar. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. A facultatividade permite que o aluno decida se quer ou não cursar aquela disciplina, independente de seu conteúdo (lembre-se das disciplinas facultativas de faculdades). O caráter facultativo ou não de uma matéria simplesmente não tem a relação necessária que se pretendeu a ele atribuir por integrantes da maioria do STF com o conteúdo confessional ou não do ensino religioso.
O que mais choca é a ingenuidade decorrente das ideias objetivamente positivadas pela maioria do STF, na sua crença de que o ensino religioso confessional será, efetivamente, pluralista e não-discriminatório (pense-se no voto do Ministro Fachin, para a escola espelhar o pluralismo da sociedade brasileira, em um microcosmo de participação de todas as religiões e de ateus, sem discriminações).
Ora, em que mundo vive esta maioria do STF? Porque, no mundo real e não numa espécie de “mundo das ideias platônico”, as escolas que fornecem ensino religioso facultativo promovem, na prática, verdadeira catequese cristã, em “cristocentrismo” puro. Vamos ter que ter verdadeiros atos de fé na neutralidade de Prefeitos, Governadores e Presidentes relativamente a suas crenças religiosas, na torcida de que eles respeitem a pluralidade confessional afirmada pelo STF? Caberá apenas torcer, por pura fé, mas absolutamente inverossímil isso… E a dica consta do voto vencido do Ministro Roberto Barroso:
“Para ilustrar tais perigos, veja-se o caso do Estado do Rio de Janeiro, que optou por adotar o modelo confessional, mesmo após a revisão da LDB. Em 2004, o Rio de Janeiro realizou concurso público específico para o preenchimento de 500 vagas de professores de ensino religioso, sendo 342 para professores católicos, 132 para evangélicos e 26 para outros credos. De acordo com o edital do concurso, no ato da inscrição, os candidatos deveriam declarar a opção por um credo e serem credenciados pela autoridade religiosa. Reconheceu-se, ainda, às autoridades religiosas o direito de cancelar, a qualquer tempo, o credenciamento, quando o professor mudar de confissão religiosa ou apresentar motivos que o impeçam moralmente de exercê-la, caso em que para permanecer nessa condição o professor deveria apresentar novo credenciamento. Não há nada mais contrário à laicidade estatal e aos princípios que regem os concursos públicos do que fazer o cargo de professor depender de manifestação de vontade de confissões religiosas. E ainda pior: o ensino religioso confessional produziu relevante impacto para o erário estadual. Segundo o Deputado Carlos Minc, apenas em 2004, o ano da realização do concurso, o Rio de Janeiro gastou cerca de 16 milhões com a oferta da disciplina” (grifo nosso).
Lembre-se que a Procuradoria Geral da República ingressou com essa ação em razão desse problema social, solenemente ignorado pela maioria do STF, a saber, de catequese confessional da crença da maioria da população nas referidas aulas. Aliás, de que adianta o STF convocar audiência pública e admitir “amici curiae” (amigos da Corte) se o Tribunal simplesmente desconsidera os elementos fáticos nela e por eles apresentados?? Sintetiza-se com o seguinte trecho do voto vencido do Ministro Roberto Barroso, que bem expõe o drama em questão:
“não existe um mecanismo que contribua para que o conteúdo do ensino religioso seja transmitido sem proselitismo e com respeito à liberdade religiosa dos alunos em todas as escolas de ensino fundamental no Brasil. Em decorrência disso, não são raros os relatos de discriminação de cunho religioso, muitas vezes graves e envolvendo até violência física, em especial relacionados a religiões de matriz africana. De acordo com relatório produzido pela Relatoria do Direito Humano à Educação da Plataforma Dhesca, em razão do recebimento de denúncias sobre casos de discriminação de cunho religioso nas escolas, ‘(e)ntre as denúncias que chegaram à Relatoria, de diversas regiões do país, encontram-se casos de violência física (socos e até apedrejamento) contra estudantes; demissão ou afastamento de profissionais de educação adeptos de religiões de matriz africanas ou que abordaram conteúdos dessas religiões em classes; proibição de uso de livros e do ensino da capoeira em espaço escolar; desigualdade no acesso a dependências escolares por parte de lideranças religiosas, em prejuízo das vinculadas à matriz africana; omissão diante da discriminação ou abuso de atribuições por parte de professores e diretores, etc. Essas situações, muitas vezes, levam estudantes à repetência, evasão ou solicitação de transferência para outras unidades educacionais, comprometem a autoestima e contribuem para o baixo rendimento escolar’” (grifo nosso).
Logo, mostra-se ingênua e despreocupada com a realidade objetiva a afirmação do Ministro Lewandowski, pela qual “o ensino religioso nas escolas públicas, seja ele confessional ou interconfessional, somente se mostrará legítimo se observar os preceitos de neutralidade aplicáveis” e que o ensino público religioso “seja ministrado de forma cuidadosa e respeitosa, sem discriminar ou estereotipar os alunos em razão de suas características pessoais ou opções individuais”. É claro que se torce e se deseja que, já que o ensino religioso confessional foi autorizado, ele aconteça dessa forma pluralista e não-discriminatória. Apenas se aponta que isso simplesmente fecha os olhos à realidade objetiva, comprovada no processo…
Ademais, pensemos em um exemplo hipotético, aplicando a lógica argumentativa da maioria do STF. Numa escola de 3000 alunos, com 2997 cristãos, 1 judeu, 1 muçulmano e 1 budista, se estes três últimos quiserem ensino confessional de suas religiões, as escolas públicas terão que isto permitir, sob pena de violação deste “direito fundamental ao ensino religioso confessional facultativo” afirmado pelo STF. Como disse na citada entrevista do Justificando o Professor Alexandre Bahia, Doutor em Direito Constitucional pela UFMG, vão chover “reclamações” perante o STF – ações movidas diretamente perante o Tribunal[2], já que qualquer pessoa que vive no mundo real sabe que a catequese confessional atualmente feita nas escolas públicas vai se alastrar e piorar. Ações civis públicas também poderão ser movidas nesse sentido, em primeira instância. Afinal, como bem disse o voto vencido do Ministro Marco Aurélio,
“O Brasil é marcado por ampla diversidade religiosa, e o sistema de ensino fundamental apresenta graves deficiências, inclusive sob o ângulo da infraestrutura. Cabe questionar a viabilidade de exigir-se dos Estados e dos Municípios a oferta de disciplina para cada corrente religiosa, sendo utópico esperar que, em localidade incapaz de assegurar o ensino de, por exemplo, matemática e português, os alunos tenham acesso a aulas de ensino religioso compatíveis com a liberdade de crença. É razoável supor que as escolas, ante a dificuldade de abranger integralmente o espectro de religiões, limitem-se a disponibilizar turmas referentes às crenças majoritárias ou mesmo àquelas com as quais a própria direção do estabelecimento simpatiza. Daí porque a mera previsão de respeito à diversidade religiosa nas normas questionadas revela-se insuficiente para assegurar a laicidade estatal”.
Como visto, só o assustador voto do Ministro Lewandoski quis permitir o ensino apenas da crença majoritária da nação, donde a preocupação do Ministro Marco Aurélio provavelmente justificará múltiplas reclamações ao STF. Algo que não se deseja (essa discriminação de crenças minoritárias, justificadora de reclamações), mas que é o que é verossímil ante a realidade objetiva de “cristocentrismo” que a maioria do STF decidiu não considerar…
Ou seja, o STF, sempre tão preocupado com a quantidade de processos que tem que julgar, acaba de criar um problema para si próprio, pois é extremamente provável que o mundo real prevaleça sobre esse inverossímil e ingênuo mundo das ideias de “ensino religioso confessional pluralista” da maioria do STF, forçando Ministério Público e prejudicados a judicializar essa questão país afora, inundando o controle difuso de constitucionalidade…
Em um país com parcos recursos para escolas públicas, com Professores mal remunerados, agora o Estado financiará ensino de dogmas religiosos?
Obviamente, temos norma constitucional que fala sobre ensino religioso nas escolas públicas que deve ser respeitada, mas deveria sofrer concordância prática com o princípio da laicidade estatal ao invés de ser interpretada isoladamente, para que se promovesse verdadeiro ensino crítico da História das Religiões, em seus princípios, acertos e erros históricos de seus líderes etc – nos termos do voto vencido do Ministro Barroso, a “exposição, neutra e objetiva, das doutrinas, práticas, história e dimensões sociais das diferentes religiões (incluindo posições não religiosas)”. Mas preferiu-se interpretar a Constituição como “permitindo” que o dinheiro público financie a promoção de dogmas religiosos na escola pública…
O STF falhou, ainda, na função contramajoritária inerente à jurisdição constitucional. Isso porque temos visto um crescimento vertiginoso e assustador do fundamentalismo religioso no Congresso Nacional, nas Assembleias Legislativas e nas Câmaras de Vereadores. Nas últimas duas eleições majoritárias de âmbito federal, estaduais e municipais, os principais candidatos sempre procuram não desagradar lideranças religiosas fundamentalistas na busca desesperada de votos. E, quando eleitos, continuam de joelhos às Bancadas Fundamentalistas dos Legislativos. Essa decisão do STF, ainda que sem intenção, aumenta a força da pretensão totalitária de parlamentares fundamentalistas que querem impor seus dogmas a toda a população, em total descaso com a laicidade estatal. Pois, agora, podem usar o dinheiro público para promover suas crenças nas escolas. Com o perdão da informalidade, era só o que faltava…
Vou retomar aqui o citado argumento do Ministro Roberto Barroso, no sentido de que a previsão constitucional originária de ensino religioso nas escolas públicas é uma restrição ao regime jurídico geral de laicidade estatal, que demanda por neutralidade axiológica do Estado frente à religião, a demandar a interpretação restritiva do art. 210, §1º, da CF/88, no sentido de permitir ensino de História das Religiões, não ensino de dogmas religiosos, ainda que de forma pluralista. Consoante relato de Jane Reis Gonçalves Pereira, o Tribunal Constitucional Alemão adota o princípio da neutralidade confessional das escolas “cujo propósito é não só proteger as convicções religiosas dos alunos e dos pais como também assegurar a paz religiosa, evitando o risco de o ambiente escolar tornar-se palco de enfrentamentos religiosos”. Referido Tribunal adotou essa lógica tanto para proibir que professora utilizasse um véu islâmico enquanto ministrava aulas em escolas (perante crianças), como para proibir a afixação de crucifixos em escolas públicas, por força dos princípios da neutralidade religiosa e da separação entre Estado e Igreja.
Para a Corte Constitucional Alemã,
“o Estado deve ser neutro em matéria religiosa – o que significa a impossibilidade de tomar parte em favor de uma ou outra crença – e, de outro lado, a laicidade não pode ser ‘combatente’, de modo a eliminar a pluralidade que deve existir no âmbito social. No entanto, a neutralidade confessional assume uma importância especial na escola pública, em vista do caráter obrigatório do ensino. Nesse âmbito, a conduta dos professores é particularmente relevante, tendo em vista que a relação de hierarquia estabelecida entre estes e os alunos faz com que a utilização de símbolos religiosos marcantes, como o véu, assuma um caráter ostentatório, interferindo no processo de formação da consciência dos jovens. Nessa perspectiva, frisou-se a necessidade de diferenciar as limitações impostas aos professores e aos alunos, bem como de distinguir as situações em que os professores lecionam para alunos mais amadurecidos ou mais jovens. A partir dessas premissas, a Corte entendeu que, no caso em questão, o fato de a recorrente ser professora primária, bem como a circunstância de o símbolo religioso ser ostensivo e contraditório com o princípio constitucional da igualdade entre os sexos, tornavam a proibição imposta proporcional e, portanto, legítima”.
Destaque-se que o próprio voto vencedor do Ministro Fachin reconhece que o entendimento que prevaleceu no STF vai em sentido contrário à compreensão esposada pelo Comentário Geral n.º 22/1993 do Comitê de Direitos Humanos sob o Pacto de Direitos Civis e Políticos da Organização das Nações Unidas (OMU) sobre o direito à liberdade de pensamento, consciência e religião, ao aduzir que “O Comitê é da opinião que o artigo 18 (4) permite o ensino em escola pública de temas como a história geral das religiões e ética se lecionadas de um modo neutro e objetivo”…
Em suma, Estado Laico é o que não se confunde com nenhuma religião, não adota uma religião oficial, permite a mais ampla liberdade de crença, descrença e religião, com igualdade de direitos entre as diversas crenças e descrenças e no qual fundamentações religiosas não podem influir nos rumos políticos e jurídicos da nação, proibidas quaisquer relações de dependência ou aliança do Estado com qualquer crença religiosa[4]. Trata-se de tese que defendi há quase dez anos e meu entendimento se mantém. A garantia do Estado Laico obsta que dogmas da fé determinem o conteúdo de atos estatais e sejam impostos a quem não lhes acolha voluntariamente, bem disse o Ministro Marco Aurélio (tese não refutada pela maioria).
Lamentavelmente, a laicidade estatal foi enterrada, pelo STF, neste tema específico, ao permitir a promoção de dogmas religiosos em escolas públicas por intermédio do escasso dinheiro público (que o diga a emenda constitucional do teto de gastos, a “emenda do fim do mundo”, que de forma inconstitucional sacrifica investimento em direitos sociais a pretexto de pagar juros da dívida pública…). Impossível compatibilizar isso com a laicidade estatal, em sua clássica compreensão de separação entre Estado e Religião, bem concretizada pela vedação constitucional a relações recíprocas de dependência ou aliança (pois não se pode seriamente dizer que não haveria “aliança” quando o Estado ensina dogmas religiosos em escolas públicas). Decisão surpreendente e decepcionante de nossa Suprema Corte. A qual, provavelmente, será forçada a reapreciar o tema no futuro, quando a realidade objetiva de discriminação “cristocêntrica” a religiões minoritárias (desde sempre existente, embora incompreensivelmente desconsiderada pela maioria) gerar judicialização que exija o caráter pluralista e não-discriminatório afirmado pelo Tribunal, mediante reclamações ou eventuais recursos extraordinários.
Portanto, necessárias as palavras do Professor Tulio Vianna, que realizou sustentação oral no julgamento em nome da Liga Humanista Secular do Brasil (LiHS):
“A pior coisa que pode acontecer agora para o Estado Laico é as pessoas se calarem. É aceitarem resignadas o avanço do obscurantismo religioso. É aceitarem que já nos tornamos uma teocracia. Na democracia é natural perdermos decisões importantes, mas elas são apenas batalhas. O obscurantismo só vencerá se os ateus, agnósticos e outros laicos se conformarem com a derrota e desistirem de lutar pela laicidade. De minha parte continuarei lutando pelo Estado Laico, em sala de aula, no meu canal no Youtube, aqui no Facebook e nas oportunidades em que puder defender a causa perante os tribunais. Hoje perdemos por 6×5. Mas ministros se aposentam e mandatos de deputados e senadores terminam. A Terra não é plana e dá voltas. No final a razão vencerá o obscurantismo. Se a razão não venceu ainda, é porque não chegamos no final”.
A luta continua.
Paulo Iotti é Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino de Bauru (ITE). Especialista em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Especialista em Direito da Diversidade Sexual e de Gênero e em Direito Homoafetivo. Membro do GADvS – Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero. Advogado e Professor Universitário.
[1] “Os magistrados do STJ possuem um pensamento já consolidado a respeito do tema e afirmam que “a teoria aplica-se apenas em situações excepcionalíssimas, nas quais a inércia da administração ou a morosidade do Judiciário deram ensejo a que situações precárias se consolidassem pelo decurso do tempo“, conforme explica o ministro Castro Meira no RMS 34.189”, visando preservar “interesses sociais já consolidados”, explicou a Ministra Eliana Calmon, no REsp 1.189.485. Cf. (acesso em 28.09.2017).
[2] O art. 988, §5º, II, do CPC/2015, afirma inadmissível a reclamação quando não esgotadas as instâncias ordinárias “para garantir a observância de acórdão de recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida ou de acórdão proferido em julgamento de recursos extraordinário ou especial repetitivos”. Mas aqui tivemos decisão em controle concentrado de constitucionalidade (em ADI), logo, não há necessidade de esgotamento das instâncias ordinárias (juiz e Tribunal de 2ª Instância) no presente caso.
http://justificando.cartacapital.com.br/2017/09/28/supremo-rasga-estado-laico-ao-permitir-ensino-de-dogmas-religiosos-nas-escolas-publicas/